O Vazio Sempre Foi a Regra



Os gregos, com sua inclinação para nomear o que escapa à linguagem, chamaram de apeirokalia a incapacidade de experimentar as coisas mais belas. Para eles, tratava-se de uma espécie de mutilação espiritual: o homem privado dessa vivência era um prisioneiro, incapaz de escapar das sombras da caverna platônica, condenado a vagar por um mundo de ecos, sem jamais tocar o sol da verdade, do bem e do belo.

Platão e Aristóteles, como quase todos os filósofos que os sucederam, partiam de uma premissa implícita: de que havia algo a ser visto fora da caverna. De que a unidade do belo, do bom e do verdadeiro não era uma invenção humana, mas um reflexo de uma ordem cósmica que, com esforço e ritos, poderia ser intuída. Esse pressuposto percorreu séculos de filosofia, das meditações neoplatônicas à teologia escolástica e, muito mais tarde, ao idealismo de Leibniz.

Mas nada disso resiste ao colapso das ilusões que estruturaram a civilização ocidental. O que chamamos de apeirokalia — a surdez ao sublime — não é uma tragédia do nosso tempo. É apenas a percepção tardia de que não existe nada para ouvir.

A modernidade, com sua fragmentação dos valores, é muitas vezes descrita como decadência. Max Weber, em seu célebre diagnóstico de 1918, lamentava a “dissociação dos valores ético-religiosos, estéticos e cognitivos”, como se uma era anterior tivesse conhecido uma harmonia perdida. Ele identificava na vida mística e nas relações íntimas os últimos refúgios para um sopro de sentido, “o pneuma profético que, nos tempos antigos, varria as grandes comunidades como um incêndio”.

Essas fortalezas, como sabemos, não resistiram. A vida mística foi devorada pelo mercado de esoterismos descartáveis; a intimidade, convertida em espetáculo e mercadoria, não é mais que uma máscara publicitária. Aquilo que Weber chamava de “valores supremos” dissolveu-se em retóricas concorrentes, cada qual sustentada por interesses, e nenhuma mais convincente que uma campanha de marketing.

Para alguns, essa dispersão é o sinal de um declínio civilizacional. Para outros, o resultado de um “capitalismo tardio” que destruiu o espírito. A verdade — ou, ao menos, a constatação menos ilusória — é mais simples: não há declínio porque nunca houve substância. Os valores não se dissolveram; apenas perderam o véu que lhes dava aparência de eternidade.

Na literatura moderna, essa revelação se manifesta não como lamento, mas como estilo. Beckett construiu uma obra inteira sobre o fato de que não há nada a esperar — nem por Deus, nem por sentido, nem por redenção. Seus personagens não sofrem por perderem o sublime; sofrem porque a própria ideia de sublime se mostra ridícula. Thomas Bernhard, em suas torrentes de misantropia, ri do impulso humano de buscar sentido em arte ou filosofia. Ambos, à sua maneira, são escritores da apeirokalia — não como carência, mas como diagnóstico: o vazio sempre foi a regra, e nossa busca pelo belo ou pelo verdadeiro sempre foi uma farsa útil.

O que se convencionou chamar de educação superior ilustra essa farsa com precisão. Durante séculos, vendeu-se a ilusão de que estudar filosofia, literatura ou ciência era abrir-se ao sublime. Hoje, quando a educação se resume a treinamento para carreiras, alguns intelectuais denunciam a corrupção do ideal humanista. Mas esse ideal sempre foi uma cortina de fumaça. Platão não fundou a Academia para libertar almas, mas para moldar governantes; as universidades medievais não cultivavam a verdade, mas teólogos obedientes; os humanistas do Iluminismo não buscavam o bem comum, mas uma nova teologia secular: o progresso. O atual desnudamento dessa pretensão não é decadência — é a revelação de sua função real.

É frequente ouvir que vivemos numa época de fragmentação radical: a estética celebra o grotesco e a crueldade; a ética reduz-se a acusações e indulgências seletivas; a verdade é reduzida ao consenso estatístico de comunidades acadêmicas que, como todas as corporações, protegem seus interesses antes de qualquer princípio. Mas essa suposta inversão de valores não é uma deformação de um ideal original — é simplesmente mais uma configuração do instinto humano por distrações. O belo, o bom e o verdadeiro nunca estiveram unidos porque nunca existiram fora das histórias que contamos a nós mesmos para suportar a vida.

Por vezes, alguém experimenta algo que parece romper essa lógica — um arrebatamento diante de uma música, um êxtase místico, um instante de fusão com a natureza ou outro ser humano. Esses momentos são intensos, mas não revelam nada além da plasticidade do cérebro humano, que pode, sob certas pressões, produzir sensações de transcendência. São alucinações funcionais: ajudam-nos a tolerar o absurdo, mas não correspondem a nenhuma realidade metafísica.

O universo não conhece apeirokalia, nem conhece o belo, o bom ou o verdadeiro. Essas categorias são ruídos da espécie humana — sons que inventamos para dar forma ao vazio, para transformar a indiferença do mundo em narrativa.

O que resta, então? Nada — e esse nada não é uma tragédia. É a constatação de que não há harmonia perdida a restaurar, nenhum sentido a resgatar, nenhum “espírito” a salvar. A apeirokalia não é um sintoma de decadência cultural, nem uma maldição sobre a humanidade moderna. É a condição natural.

A vida não precisa de sentido para ser vivida, assim como não precisa do belo para ser suportada. O resto é ruído — ruído que, por um tempo, distrai. Até que o silêncio retorne.

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