O novo livro de Marcelo Leite, A ciência encantada de jurema, chega às livrarias como mais uma tentativa de aproximar dois mundos que não podem ser reconciliados. De um lado, a tradição afro-indígena da jurema, viva em rituais transmitidos por mestres e mestras que a tratam como caminho de cura e memória. Do outro, a ciência moderna, que vê na planta um objeto de investigação, uma molécula a ser isolada e aplicada segundo protocolos.
Não é um encontro. É uma colisão educada.
A ciência não “dialoga” com tradições; ela as traduz para a sua própria gramática. E toda tradução desse tipo é, na verdade, uma substituição. A jurema que entra no laboratório deixa de ser a jurema do terreiro. O que sai do outro lado é um composto psicoativo com potencial terapêutico — útil, patenteável, mas desprovido da teia de significados que o tornava sagrado.
O mito moderno do progresso diz que todo conhecimento pode ser incorporado ao projeto científico, assim como religiões antigas acreditavam que toda alma humana podia ser incorporada à sua salvação. É o mesmo sonho de universalidade, apenas com outro léxico.
Leite conhece os riscos. O livro menciona críticas indígenas ao extrativismo científico, e alerta para o interesse empresarial na N,N-dimetiltriptamina (DMT) da jurema. Mas seu fascínio pelo universo que investiga suaviza o tom. Ficam ausentes algumas das contestações mais recentes, como as que denunciam pesquisas conduzidas sem consulta às comunidades guardiãs desses saberes. É um silêncio revelador: mesmo quando se quer preservar o mistério, o impulso de torná-lo acessível a todos continua sendo mais forte.
Parte da narrativa acompanha a mutação da jurema na cultura global do psicodélico: de rito demorado e comunitário a “ayahuasca fumável” para consumo rápido. É a lógica de nosso tempo: acelerar, intensificar, descartar. Não é degeneração, nem progresso — é transformação irreversível. E o que se perde nesse processo não é mensurável.
O título do livro — A ciência encantada — é, no fundo, uma contradição. A ciência existe para desfazer encantos. Quando tenta preservá-los, acaba apenas criando cópias. O que é arrancado de seu contexto original não sobrevive como era. A cuia que circula num terreiro e o frasco numerado num ensaio clínico não pertencem ao mesmo mundo.
O erro está em acreditar que pertencem.
O que a obra de Leite revela, talvez sem intenção, é que alguns saberes só existem enquanto são guardados, não compartilhados. Não por egoísmo ou ignorância, mas porque seu sentido depende de um mundo que não cabe na nossa ideia de universalidade.
Podemos estudar a jurema. Podemos isolá-la, medi-la, aplicá-la. Mas não podemos traduzi-la sem destruí-la. E se esse destino é inevitável, então a pergunta não é “o que ganharemos com isso?”, mas se ainda conseguimos viver num mundo onde certas coisas permanecem fora do nosso alcance.
A ciência encantada de jurema
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