A Desintegração do Eu e a Ilusão da Consciência: Um Ensaio Sobre o Fim da Autobiografia Humana

 


A crença na unidade da autoconsciência humana sempre foi uma ilusão conveniente. Durante séculos, culturas diferentes sustentaram a ideia de que cada indivíduo, apesar de viver em meio ao fluxo do tempo, poderia apreender sua vida como uma narrativa coerente. Essa ilusão foi sustentada por mitos, religiões e, mais tarde, por versões seculares do mesmo consolo: o progresso, a razão, a liberdade individual. O que está se desintegrando hoje não é apenas essa narrativa, mas a própria necessidade de fingir que ela pode ser mantida.

O sentido de um “eu” contínuo, capaz de ligar passado, presente e futuro, sempre foi um artifício. Em sociedades que acreditavam em uma ordem eterna — seja a de um Deus ou a de leis morais universais —, o indivíduo podia imaginar-se como parte de algo mais amplo, e sua memória encontrava coerência nesse horizonte. Sem essa moldura, o eu se fragmenta em episódios descontínuos. O que chamamos de “autobiografia” passa a ser apenas uma colagem arbitrária de cenas, ajustadas para satisfazer exigências sociais, terapêuticas ou políticas.

Essa dissolução não é apenas psicológica. Ela tem implicações políticas diretas. Um indivíduo que não consegue conceber sua vida como um todo é mais vulnerável a manipulações. Ele se torna disponível para qualquer narrativa coletiva que prometa sentido, seja uma utopia tecnológica, uma ideologia de identidade ou uma religião política. A fragmentação do eu é, em última análise, uma ferramenta de poder. Não é coincidência que regimes totalitários tenham sempre buscado controlar a memória individual e coletiva. Quando a memória se torna instável, o indivíduo deixa de ter qualquer âncora moral ou histórica que o proteja.

A filosofia moderna acelerou essa erosão. Ao tentar purificar a autoconsciência de tudo que é contingente, produziu um eu abstrato, sem passado, incapaz de se sustentar fora da razão pura. Esse experimento intelectual acabou por corroer o próprio terreno onde a experiência humana podia se enraizar. Mas a dissolução não é apenas culpa de filósofos. Ela é também o produto inevitável de uma civilização que já não acredita em nada duradouro. O mercado, a tecnologia e a política operam como agentes de aceleração: memórias e identidades são descartáveis, reescrevíveis e substituíveis.

Não há retorno ao modelo antigo. Nenhum apelo à tradição ou à transcendência pode restaurar a unidade perdida. O que resta é reconhecer que o eu contínuo foi sempre uma ficção útil, e que agora vivemos sem sequer o consolo dessa ficção. Talvez possamos aprender a lidar com a fragmentação, aceitando que a vida humana não é uma história, mas uma sucessão de instantes cujo sentido é sempre parcial e temporário.

A esperança de um fio condutor pode ter morrido, mas o vazio que ela deixa não precisa ser preenchido por ilusões piores — como a promessa de redenção por sistemas políticos ou a fé ingênua na tecnologia. Se a autoconsciência não pode ser unificada, talvez seja melhor aceitá-la como algo múltiplo e instável, e abandonar de vez a busca por coerência que sustentou tantas mentiras confortáveis.

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