A visão das plantas: o limite da metáfora humana



Li A Visão das Plantas de Djaimilia Pereira de Almeida como se percorresse um jardim que não é meu. E, como em todo jardim, há uma promessa tácita: a de que nele encontrarei ordem, sentido e consolo. Mas essa promessa, percebo logo, é apenas mais uma forma da ilusão humana que denunciei em textos anteriores: a de que o mundo existe para responder às nossas inquietações.

Celestino, o capitão negreiro convertido em jardineiro, não busca redenção. O que ele busca — e não o confessa — é um pacto de silêncio. O jardim é cúmplice porque as plantas não têm moral. Elas não exigem explicações, não distribuem perdões. A primeira metáfora que o livro me oferece é, assim, corrosiva: a natureza não se curva ao peso de nossa culpa. Ela floresce indiferente, como sempre fez, e nós insistimos em ver nisso um gesto de compaixão.

A moralidade humana é uma peculiaridade evolutiva sem relevância para o cosmos. O livro de Djaimilia encena essa tese com a precisão de uma alegoria não-intencional: a vida vegetal prospera sobre a terra encharcada de sangue com o mesmo vigor com que prospera sobre a terra limpa. A segunda metáfora, então, é um espelho sujo — não pela lama, mas pelo reflexo que nos devolve sem retoques heroicos.

A cegueira de Celestino é outro ponto em que me detenho. Não apenas a cegueira física, mas a recusa em enxergar que seu jardim repousa sobre o mesmo mundo que ele ajudou a devastar. Essa é a terceira metáfora: a capacidade humana de criar bolhas de sentido para sobreviver à própria história. Não é esquecimento; é um tipo de adaptação comparável à fototropia das plantas — viramo-nos para a luz, ignorando o apodrecimento atrás de nós.

O título, A visão das plantas, sugere uma perspectiva não-humana. Tal perspectiva é inacessível a nós. Podemos imaginá-la, mas apenas como exercício poético. As plantas “veem” sem consciência; registram o mundo sem projetar nele narrativas. Sua visão não distingue entre crime e inocência, e é exatamente essa neutralidade que a torna insuportável para o nosso desejo de sentido.

No fundo, o jardim de Celestino é uma fábula invertida. Nele, a beleza não compensa a violência; apenas a sucede. É uma estética construída sobre o esquecimento voluntário. O erro, aqui, é acreditar que essa estética é um caminho para a salvação. O ser humano é apenas uma espécie entre outras, destinada a desaparecer como todas as demais. As plantas continuarão a crescer muito depois de termos desaparecido, assim como cresceram antes de surgirmos.

A metáfora final do livro é, para mim, o próprio limite da metáfora: o instante em que percebemos que nada, no olhar das plantas, se destina a nós. Toda a nossa moralidade, arte e história cabem apenas no estreito recinto humano. Fora dele, reina a indiferença — não como um castigo, mas como o estado natural das coisas. E é nesse reconhecimento que, paradoxalmente, encontro um raro tipo de paz: a liberdade de saber que não precisamos — e talvez não possamos — ser perdoados.

Esse livro espelha a forma como a modernidade busca ocultar as próprias ruínas sob camadas de estética e civilidade.

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