Há uma tentação permanente em toda cultura: a de reduzir a complexidade da experiência humana a uma fórmula. A “jornada do herói” de Joseph Campbell é uma dessas fórmulas que seduzem porque parecem explicar tudo, quando na verdade funcionam sobretudo como dispositivos de controle. Trata-se menos de uma descoberta sobre mitos universais do que de uma cristalização moderna do desejo por coerência — esse vício ocidental de transformar vida em esquema, em roteiro, em mapa.
O fato de a publicidade ter encontrado na jornada seu alicerce narrativo não é acidente; é destino. A fórmula campbelliana, com seus doze passos, foi inventada para ser apropriada. O capitalismo não tem interesse por narrativas singulares, mas por narrativas previsíveis, intercambiáveis, que se encaixem em ciclos de consumo. O herói sai de casa, enfrenta provas, retorna transformado — e no intervalo compra um carro, uma calça jeans, um sorvete de marca italiana fictícia. O mito convertido em clichê serve para eliminar o que há de mais perturbador na experiência: sua abertura, seu risco, sua resistência à codificação.
A verdadeira violência da jornada não está no fato de ser usada para vender produtos, mas no modo como coloniza nossa imaginação. Ela instala no leitor e no espectador uma expectativa de virada, de turning point, como se toda vida só adquirisse sentido na medida em que se organiza em torno de um acontecimento decisivo. Essa dramaturgia forçada nos torna incapazes de ver o valor do que não muda, do que permanece, do que falha em se transformar. Beckett é um antídoto: seus personagens esperam, repetem, hesitam, e ao fazê-lo revelam que também há grandeza no não-evento, no intervalo, no silêncio.
O turning point, quando existe, não se anuncia. Ele não é iluminado por holofotes narrativos. Pode ser um tropeço, um telefonema, uma recusa, um olhar. A mudança é ordinária — e, justamente por isso, intolerável. A jornada do herói oferece o consolo de que a transformação será assimilável, que o protagonista voltará ao lar, ainda que “diferente”. Mas a experiência real da mudança raramente nos devolve ao lar. Ela nos desterra.
Ao adotar a jornada como medida universal da narrativa, nossa cultura perdeu sensibilidade para outras formas. Para o fragmento, para o esboço, para a história em que nada acontece. Perdemos também a capacidade de ler sem projetar um destino sobre o texto. Tudo precisa evoluir, avançar, ter clímax e resolução. Como se a literatura não fosse também o espaço da suspensão, da ambiguidade, do inacabado.
O que está em jogo, afinal, não é apenas a integridade da narrativa, mas a integridade da imaginação. A domesticação da mudança em doze passos é uma forma de nos proteger daquilo que mais tememos: a descontinuidade radical entre o antes e o depois. O mito deveria nos confrontar com essa descontinuidade. Em vez disso, é utilizado para domesticá-la.
É preciso resgatar a mudança do cativeiro da jornada. Isso não significa negar sua potência simbólica, mas recusar sua tirania. Devemos recuperar a percepção de que o instante decisivo pode ser banal, irreconhecível, até mesmo invisível. Que não existe necessariamente catarse, lição, retorno. Que o turning point pode ser apenas o silêncio que permanece, ou a ausência de virada.
A arte, se quiser permanecer vital, precisa defender a experiência contra o esquema. Precisa preservar a opacidade da vida, o imprevisto, o que não se encaixa. Em última instância, precisamos de menos heróis — e de mais histórias que nos deixem perplexos diante daquilo que muda sem anúncio, e daquilo que, contra toda expectativa, permanece.
You'll Love These
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Postar um comentário