Poucos mitos modernos são mais duradouros — e mais perniciosos — do que a ideia de que a verdade de um ser humano reside em sua autenticidade. Este é o credo do liberalismo sentimental, de que cada indivíduo contém uma essência que pode, com perseverança e fidelidade aos próprios sonhos, ser descoberta e realizada. Trata-se de uma ficção moderna, uma variante secular da salvação cristã. Em ambos os casos, a redenção é prometida a quem for fiel — à graça divina, no caso cristão; a si mesmo, no caso liberal. Em ambos os casos, trata-se de uma fuga. A diferença, talvez, é que o liberalismo promete menos, mas cobra mais: exige que você próprio se crie.
É contra essa fantasia do eu autêntico — sempre autônomo, sempre originário — que René Girard oferece um antídoto amargo, mas terapêutico. A conversão romanesca, conforme descrita por Girard é tudo aquilo que nossa era não quer admitir: que não somos senhores de nossos desejos, que imitamos os outros mais do que reconhecemos, e que a liberdade que prezamos é, muitas vezes, apenas a liberdade de repetir padrões invisíveis.
Na terminologia grega do Novo Testamento, metanoia é a chave. Mudança de mentalidade, mudança de coração. Mas não uma mudança arbitrária, nem tampouco uma simples reorientação moral. A metanoia, no sentido girardiano, implica a derrocada de uma ilusão fundadora: a de que somos originais em nossos anseios. Essa queda é dolorosa. Os mitos não morrem sem resistência, sobretudo o mito do Eu Soberano.
Historicamente, as conversões que transformaram culturas — como a de Agostinho ou a de Pascal — sempre vieram acompanhadas por crises, rupturas interiores, perdas simbólicas que desmantelaram construções inteiras de sentido. O mesmo se aplica, em menor escala, à conversão romanesca. O que muda, porém, é o objeto: agora não é Deus quem redime, mas o reconhecimento da mediação mimética. A revelação, nesse caso, é negativa. Não há liberdade nos desejos que tomávamos por nossos; não há solidez no “eu” que julgávamos indiscutível.
A doença ontológica de que se fala — “não sou nada, nunca serei nada” — é apenas a forma moderna de uma miséria ancestral: a falta de um fundamento seguro para o ser humano. Antigamente, essa insegurança era projetada em deuses e destinos. Hoje, projeta-se em currículos, corpos, performances digitais. Mas o mecanismo é o mesmo. O desejo de ser desejável é sempre mediado: queremos o que os outros querem porque queremos ser como eles — ou sermos vistos por eles como dignos. O eletrônico da vez, o título acadêmico, o aplauso estético, o reconhecimento poético: todos são ídolos com pés de barro. Não por serem falsos, mas por não saciarem.
Nesse ponto, o leitor moderno vacila. Acostumado a pensar em termos de progresso, de superação pessoal e de autorrealização, ele se pergunta: o que resta, então? Se a conversão romanesca é o desmantelamento do projeto de ser alguém, o que sobra depois?
Girard, de modo ambivalente, aponta para a caridade. Não a caridade cristã, necessariamente; não uma teologia da salvação. Mas um olhar desarmado, compassivo, sobre o outro e sobre si mesmo. A “glória” de que se fala — e que emerge nos momentos finais de obras como Tio Vânia — não é um triunfo, mas uma iluminação suave: ver com misericórdia aquilo que antes foi visto com orgulho ferido. Essa compaixão é uma forma de saúde mental rara, pois exige a renúncia da esperança. Mais precisamente: a renúncia à esperança no sucesso dos desejos metafísicos.
A psique humana, no entanto, precisa de símbolos, e é aqui que a conversão romanesca revela sua ambivalência mais profunda. Por um lado, ela destrói a imagem que o sujeito tem de si mesmo. Por outro, oferece uma nova narrativa: a de um eu reconciliado com sua própria imitação. Não há liberdade absoluta, mas há liberdade relativa: a de ver. A de perceber que se é, como todos, um imitador, e de escolher — com alguma humildade — quem se imita.
No fim, o mosaico de conversões descrito por Girard não é um mapa para a salvação, mas uma cartografia da desilusão. Cada autor, ao se despir da mentira romântica, não se torna melhor, mais puro ou mais feliz. Apenas mais lúcido. A lucidez, para Girard como para os escritores que ele estuda, é o prêmio possível. Um prêmio modesto, mas real: ver as coisas como são, ainda que banhadas em compaixão. Isso já é muito.
É irônico, talvez, que essa visão se aproxime tanto daquilo que o cristianismo chamou de “olhar dos anjos”. Pois se os anjos existem, não é nos céus, mas nas pequenas metanoias humanas: quando alguém, enfim, deixa de tentar ser original — e começa a ser verdadeiro.
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