A importância da biblioteca



A biblioteca, dizem, é a oficina do escritor. Não é mentira. Mas tampouco é toda a verdade. Como tantas outras oficinas humanas, ela serve tanto para fabricar quanto para disfarçar. Disciplinar o hábito de leitura pode ser comparado a afiar uma lâmina: cria-se uma ferramenta precisa, mas que não pode impedir o destino de sua ferrugem.

O escritor que se cerca de livros acredita estar formando um laboratório. A metáfora é sedutora, pois sugere progresso, descoberta, controle. No entanto, o que se produz nesse espaço raramente é conhecimento novo. Mais frequentemente, a biblioteca é o palco de repetições. As frases que hoje acendem uma epifania não passam de ecos de epifanias passadas. O escritor imagina que descobre um caminho inédito; na realidade, tropeça em rastros deixados por mortos.

É verdade que alguns livros se abrem como janelas inesperadas. Mas é igualmente verdadeiro que a maior parte repousa em silêncio, aguardando um chamado que talvez nunca venha. Chamamos isso de abundância, mas o nome correto poderia ser superstição. Guardamos livros não lidos como outros guardam relíquias ou amuletos: objetos carregados de um poder potencial que nunca se realiza.

Não há nada de errado nisso. A vida humana é tecida por gestos desse tipo. O problema começa quando se confunde essa superstição com disciplina moral. Flaubert, encerrado em seu gabinete, é evocado como modelo. Mas sua regularidade não prova a eficácia da leitura; apenas ilustra a obstinação de alguém que acreditava, contra todas as evidências, que a obra de arte poderia ser esculpida à maneira de uma estátua clássica, perfeita e imortal. O destino de Madame Bovary não foi a eternidade, mas a transformação em mercadoria cultural — um produto entre outros, vendido em edições escolares.

A disciplina, dizem, molda a voz própria. Talvez. Mas também molda a submissão. Ler todos os dias é uma forma de fidelidade, e toda fidelidade é uma espécie de servidão. O escritor que retorna às mesmas páginas com devoção não está apenas cultivando sua imaginação; está, sobretudo, reafirmando sua dependência de fantasmas.

O que se chama “biblioteca viva” não passa, afinal, de um cemitério animado pela ilusão de movimento. Cada livro é um túmulo; cada frase, um epitáfio. Quando lemos, conversamos com mortos. E ao escrever, não fazemos mais que acrescentar uma nova camada a esse cemitério sem fim.

Eis a ironia: é justamente nessa conversa com fantasmas que se funda a possibilidade de uma voz literária. Não porque o escritor seja livre, mas porque a liberdade é uma ficção sustentada por gerações de mortos. A biblioteca não liberta; enreda. Mas é nesse enredamento que surgem, de vez em quando, as frases que parecem nos pertencer.

E, no entanto, é precisamente nesse cemitério que algo raro acontece. Entre sombras e ecos, uma frase às vezes irrompe como se tivesse atravessado séculos apenas para encontrar aquele que a lê. Não é revelação, tampouco salvação — mas um clarão súbito que transforma o vazio em intensidade. A biblioteca, esse labirinto de mortos, não oferece sentido duradouro. Oferece momentos. Cada epifania é frágil, condenada a desaparecer. Mas, enquanto dura, acende em nós a vertigem de estar vivos.

Assim, o escritor continua. Não porque espere redenção, mas porque, ao folhear páginas já amareladas, encontra o inesperado: a centelha que o prende, por um instante, ao mistério insuportável da existência.

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