Acreditamos que a linguagem é um instrumento a nosso dispor. Imaginamos que a palavra é um utensílio neutro, algo que pode ser usado para construir pontes ou muros, como se seu valor dependesse apenas de nossas intenções. Mas a língua não é dócil. Ela não é uma ferramenta que possuímos, mas uma força que nos molda. É ela quem define o que podemos pensar, o que podemos sentir, o que somos capazes de imaginar. Quando a língua se corrompe, não é apenas a comunicação que se perde: é a própria experiência humana que se estreita, até que nada reste além de slogans, ruídos e simulacros de pensamento.
A decadência da linguagem não é um acidente. Ela acompanha de perto o processo de decadência das sociedades. Civilizações raramente colapsam por catástrofes externas; elas apodrecem de dentro para fora, e o apodrecimento começa sempre pela palavra. Quando “liberdade” significa apenas o direito de consumir, quando “justiça” se confunde com cálculo eleitoral, quando “verdade” se dissolve em opinião, a língua já não descreve o mundo — apenas encobre a sua degradação.
O escritor, nesse cenário, não é herói, tampouco profeta. É apenas um guardião solitário de algo que os outros esqueceram. Seu trabalho é ingrato porque se mede em negativas: recusar o clichê, desconfiar do adjetivo fácil, desconstruir a frase que desliza sem atrito. Não se trata de inventar novas verdades, mas de impedir que as antigas sejam reduzidas a slogans. A vigilância da língua é, na prática, uma forma de resistência. E toda resistência verdadeira é invisível, porque se exerce contra a corrente onipresente da vulgaridade.
Vivemos num tempo em que a facilidade é um valor supremo. A linguagem se ajusta a esse imperativo. O discurso político prefere frases prontas a qualquer nuance; a publicidade transforma até as palavras mais densas em fetiches de consumo; as redes sociais reduzem a fala humana a fragmentos descartáveis. Nesse ambiente, a palavra não nomeia mais o real — apenas repete fórmulas que o tornam suportável. O resultado não é silêncio, mas um ruído incessante que torna impossível a escuta.
O perigo é que já não percebemos a perda. Quando a palavra se gasta, pensamos que se trata apenas de estilo. Mas a perda da precisão linguística é também a perda da capacidade de distinguir. E quando não distinguimos, quando já não sabemos separar emoção de histrionismo, ideia de slogan, verdade de propaganda, estamos mais vulneráveis do que imaginamos. A prisão não começa com muros, mas com a redução do vocabulário.
Orwell compreendeu isso: reduzir a língua é reduzir o pensamento. O que não pode ser dito não pode ser pensado. E o que não pode ser pensado não existe. O totalitarismo opera antes de tudo sobre a palavra. Mas não é apenas sob regimes declaradamente autoritários que isso ocorre. A tirania da comunicação fácil, a política transformada em espetáculo, o entretenimento convertido em critério de verdade — tudo isso também restringe o que podemos dizer e, portanto, o que podemos ser.
O escritor que vigia a língua não salva o mundo. Ele tampouco impede a ruína das civilizações. Mas sua recusa em aceitar o vocabulário gasto impede que a degradação seja total. Ele mantém aberta, ainda que para poucos, a possibilidade de uma experiência não corrompida. Em meio à vulgaridade, ele lembra que é possível falar com precisão, e, portanto, viver com autenticidade.
A vigilância da língua não é heroica. É artesanal, quase invisível. Ela acontece nas margens, nas frases reescritas, nos adjetivos podados, nas imagens recusadas. Mas é aí que se decide se a civilização se dissolve inteiramente no espetáculo ou se resta uma fenda de resistência. Quem cuida das palavras protege, sem saber, a própria condição humana.
Não se trata de esperança. Civilizações sempre ruem, línguas sempre se corrompem. O escritor não interrompe esse processo, apenas o atrasa. Mas nesse atraso está a única forma de dignidade que nos resta: não entregar de uma vez aquilo que somos à tirania do vazio.
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