No centro de As Cidades Invisíveis está um gesto simples e definitivo: Kublai Khan interrompe o rito das descrições e pergunta por Veneza — a cidade natal de Marco Polo — e Polo responde que, em verdade, todas as cidades que descreveu são, de algum modo, Veneza. Esse encontro não está numa página solitária; trata-se de um dos interlúdios que pontuam o romance, aqueles curtos diálogos que abrem e fecham os núcleos do livro — o momento sobre Veneza aparece, como se costuma notar, justamente no ponto médio da obra. A estrutura do livro (interlúdios regulares que enquadram cinquenta e cinco cidades) reforça essa tese: Calvino faz do enquadramento a própria lição.
Há, nesse movimento, duas verdades que exigem ser examinadas em conjunto. A primeira é a da origem: todo ato de representação surge de um lugar particular, de um corpo, de um hábito. Quando Polo fala, ele não apenas relata terras estrangeiras; leva consigo a cartografia íntima de Veneza — sua nostalgia, seu modo de ver canais e pontes, seu ritmo de partida. Essa é a condição humilde e indesejada do escritor: nunca se fala sem ser ouvido como si mesmo. A universalidade que almejamos é sempre, no fundo, uma máscara da nossa cidade natal. Ler Calvino é aprender que o sujeito que narra é, ele próprio, uma metrópole.
A segunda verdade é a da perda: a linguagem não preserva; ela transforma. Dizer é, sempre, reduzir. A palavra “angústia” contém menos que a angústia; o mapa não é o território; o nome não é o corpo que nomeia. Quando convertimos experiência em enunciado, fazemos economia de detalhe, comprimimos as texturas e abrimos espaço para generalizações. A memória, fixada em tinta, marcha em direção à sua própria aniquilação — aqueles contornos vividos que insistimos em congelar perdem, na transmutação, a sua espessura originária. É por isso que Polo teme: falar de Veneza é arriscar-se a perdê-la.
Se juntarmos essas duas proposições chegamos a uma conclusão inquietante sobre política. Ideologias e utopias surgem exatamente desse duplo vício: nascem de um lugar particular (uma cidade, uma classe, uma ciência da História) e pretendem, por meio do enunciado sistemático, fixar para sempre as experiências humanas em categorias seguras. O liberalismo, o socialismo, as promessas tecnocráticas do progresso — todos partem de mapas que pretendem recobrir o território humano. Mas a palavra que pretende salvar faz o oposto: reduz, doma, sacraliza. A fé no design racional do mundo transforma a pluralidade de vidas em peça de museu. O que começou como esperança vira liturgia; o que prometia emancipação converte-se em coerção.
John Gray escreveu que a secularização muitas vezes produz novas religiões políticas; aqui a lição de Calvino faz esse diagnóstico pictórico: ao transformar Veneza em paradigma, esquecemo-la como experiência. A política que promete uma totalidade — um plano para o homem dos homens — transforma o político em sacerdote e os cidadãos em fiéis. A história do século XX deu provas às dúzias desse processo: os projetos que afirmavam devolver o mundo à razão tornaram-se aparelhos de coerção. Agramentos racionais que aspiravam a domar a contingência humana acabam por domesticar e por vezes exterminar a variedade que diziam proteger.
Então, que papel resta à literatura? Não a de bálsamo otimista, certamente — e nem a de um escapismo neutro. A literatura tem uma responsabilidade mais radical: não consagrar o futuro, mas mostrar com precisão as fissuras do presente. Não pregar dogmas; recusar a promessa de cura por sistemas. Enquanto a ideologia ergue altares ao porvir, a literatura, por sua natureza, é uma liturgia da perda. Ela enseja, com frieza e ternura, o reconhecimento de que o humano é sempre maior do que nossas teorias. Onde a filosofia deseja ordenar, a literatura descreve; onde a política promete cura total, a literatura nomeia feridas.
É preciso, portanto, uma política de humildade — não no sentido condescendente do “realismo” que só administra grandes narrativas, mas como uma prática que assume limitação: admitir que não há linguagem transparente capaz de fixar o humano sem violá-lo; admitir que a preservação é sempre parcial; admitir que governo e poesia são ofícios distintos e que o primeiro não pode usurpar a linguagem do segundo sem violência. A revolta política mais urgente hoje não é a de substituir um dogma por outro, mas a de desmontar a pretensão de totalidade. Isso não é resignação: é coragem política.
O final, então, precisa ser uma pequena catequese invertida. Recusar o futuro como altar. Desmontar as liturgias do progresso. Recuperar o hábito de descrever com honestidade. Defender a cidade de cada um — não como modelo impermeável, mas como vulnerabilidade que persiste. Se Calvino nos ensina que todas as cidades são Veneza, a lição política que devemos tirar é que toda política que se pretende única esvazia as cidades de sentido. A única salvação plausível é a prática modesta de escrever sobre o que se perdeu — não para restaurá-lo ingenuamente, mas para preservá-lo como advertência.
Terminemos com algo que soaria a epígrafe de um moralista: a história não está à espera de nossos mapas; a política não nos absolverá da finitude. Quem quer dominar o mundo pelo enunciado só constrói altares para os mortos. Aos vivos resta o gesto menor e mais perigoso: narrar, com toda a franqueza que cabe em uma sentença, as coisas que o poder tenta reduzir. Se há redenção, ela passa por aqui — não em promessas, mas na resistência quotidiana de quem recusa a liturgia e escreve as cidades como ruínas habitáveis.
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