A tirania da memória


Não é o esquecimento que ameaça a vida humana, mas a memória. Costumamos tratá-la como uma dádiva, o fio invisível que une passado, presente e futuro. No entanto, talvez seja mais exato vê-la como uma prisão que carregamos dentro de nós. Não escolhemos recordar: somos recordados.

Imaginemos por um instante uma existência sem memória. Seria caótica, dizem. Mas a ordem que a memória nos oferece não é menos ilusória. O que lembramos não é um inventário fiel do que aconteceu, e sim um arranjo moldado pelo desejo, pela dor e pela imaginação. A cada recordação, reconstruímos o passado com os tijolos de hoje. A memória não preserva a realidade — ela a inventa.

É por isso que confiar nela como guia é tão perigoso. Povos, como indivíduos, vivem de lembranças que acreditam sagradas, mas que são apenas versões fabricadas de acontecimentos irrecuperáveis. Guerras foram travadas não tanto pelo que aconteceu, mas pelo que alguém disse que aconteceu — e que muitos quiseram lembrar.

A literatura nos mostra esse duplo caráter da memória. O memorialista se limita a recitar lembranças, como se repetir o passado fosse suficiente para justificá-lo. O romancista, pelo contrário, revela sua natureza mais profunda: não há memória sem ficção. Marcel Proust compreendeu isso melhor que ninguém. Ao tentar recuperar o tempo, descobriu que a recuperação era impossível. O passado, quando retorna, já está deformado.

Assim, não é a ausência de memória que nos empobrece, mas o seu excesso. Escritores que só reproduzem lembranças estreitas, leitores que só interpretam dentro de experiências limitadas, acabam sufocados pela própria continuidade que tanto valorizam. É preciso esquecer para que algo novo se forme.

André Gide tinha razão ao dizer que “o difícil é inventar, ali onde a memória nos prende”. A memória é a corrente que nos ancora ao já vivido. A imaginação é a única força capaz de soltar o barco.

O mito moderno nos ensina a venerar a lembrança como se ela fosse sinônimo de identidade. Mas talvez a sabedoria esteja em reconhecer que somos feitos também do esquecimento. Esquecer não é perder, mas libertar-se. Uma vida sem memória seria impossível; uma vida regida apenas por ela, insuportável.

No fim, talvez a maior ilusão seja acreditar que dominamos nossas lembranças. Elas é que nos dominam — e a liberdade, se existe, só pode nascer no espaço breve em que ousamos criar a partir do que não lembramos mais.

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