Sobre o ensaio impessoal: um campo aberto e delicado


Há uma tensão oculta no próprio ato de escrever um ensaio: entre o desejo de revelar algo verdadeiro e o risco de se dissolver num confessionário. Zadie Smith defende, com elegância, a noção do ensaio impessoal — uma voz que pensa, mas não se impõe, que dialoga sem se apropriar — e é essa tensão que me interessa perscrutar.

Smith relata que, ainda jovem, descobriu uma espécie de “truque mental” para domar o pavor da página em branco: desenhar um retângulo e distribuir nele seis flechas, cada uma indicando um estágio da progressão argumental. Introdução, desenvolvimento, contraponto, síntese, aproximação da conclusão, e finalmente o encerramento. Esse esquema, tão simples quanto pragmático, funciona como um leme para a escrita — um contorno impessoal e discreto, ao qual nos agarramos quando a angústia nos assalta.

Não se trata, porém, de uma fórmula mágica (e Smith não a apresenta como tal). O retângulo é apenas uma estrutura provisória, que alivia o peso da responsabilidade criativa. Ele guarda espaço para o imprevisto: o instante em que o pensamento se curva sobre si mesmo, reveza posições, vacila. E é nesse intervalo que o ensaio de fato aparece — os “componentes invisíveis” da reflexão se tornam visíveis.

Dos seus relatos de carreira literária emerge também um paradoxo: Smith aprendeu a escrever de modo impessoal num ambiente que valoriza o enfoque, o “eu”. A universidade inglesa, como ela conta, ensinava o ensaísmo como um instrumento de desapego, ironia, controle — quase uma abstração retórica. Mas ela mesma, de dentro dessa tradição, viu-se empurrada ao ressarcimento do “eu”, aquele narrador caótico, íntimo e contraditório. 

E aí reside o cerne da arte do impessoal: não suprimir o eu, mas deliberadamente distanciá-lo. Tornar-se “eu” de modo incerto. Em cada ensaio, aparece uma versão diferente do “eu” — não aquele que domina todas as certezas, mas aquele que hesita, recua, revisa. Smith reconhece que jamais é exatamente a mesma “eu” que digita aquele “eu”. A pessoa do ensaio é múltipla, dispersa, em mutação. 

Esse “eu múltiplo” é, paradoxalmente, a base de um “nós” — a ideia de que o ensaio pode desenhar um espaço comum, sem exigir identidade total entre autor e leitor. A voz impessoal se propõe à solidariedade, não à fusão. Ao usar “nos”, “nós”, Smith busca um terreno mínimo compartilhado: dor, mortalidade, experiência humana. Não é supor uma equivalência absoluta, mas invocar limitações e contigências que todos conhecem em grau variável. 

O ensaio impessoal, portanto, é uma ecologia frágil. Ele permite contiguidade: ideias que atravessam o presente e o passado. Permite distinção: o escritor não confunde suas dores com as dores alheias. Permite conflito: as ideias assumem disputas internas. E permite abertura: não encerra o leitor numa conclusão definitiva, mas deixa passagem para o questionamento próprio.

É irônico: num mundo saturado de vozes que clamam por autenticidade, o ensaio impessoal nos lembra que todo “eu” é um território disputado. A autenticidade absoluta é uma ilusão. O ensaio verdadeiro não diz “eu falo por mim”, mas “aqui, falo com vocês, mas não como vocês”. Não é um confessionário, mas um fórum de reflexão.

Se Zadie Smith oferece o retângulo com as flechas como instrumento de contenção, eu proponho vê-lo também como fronteira: onde o pensamento toca o limite de si mesmo. Onde o “eu” se retrai para permitir a reflexão. Onde a ideia se conserva impessoal para que não se perca em sentimentalismo. Aquele retângulo — e suas flechas — talvez seja uma câmara de contenção, um quarto limpo onde as obsessões pessoais aguardam serem filtradas.

No fim, quem leu ou quem ensaia sabe: o impessoal é um ato de risco. Porque implica abrir-se ao outro sem se anular. Porque exige que contenhamos o “eu” para deixá-lo emergir em formas que não lhe são imediatamente próprias. E porque sempre haverá uma réstia, uma contradição, um instante em que a voz quase falha — e é justamente nesse instante que o ensaio vivifica-se.


Postar um comentário

José Fagner. Theme by STS.