A Rua 25 de Março (v.Muito além da 25 de Março) é um retrato fiel daquilo que o capitalismo sempre foi: uma economia do improviso, movida por redes invisíveis e moralmente indiferentes. Nenhuma novidade nisso, embora insistamos em tratá-la como anomalia.
As barracas, as galerias e os galpões que se estendem pelo centro de São Paulo são apenas o cenário mais recente de uma história muito antiga — a de comunidades humanas organizando a escassez por meio de hierarquias informais e pequenos truques de sobrevivência.
A sociologia chama isso de “captura por ilegalidade”. Mas o que está sendo descrito não é a exceção: é a norma. Toda economia, em algum nível, repousa sobre uma dose calculada de violação. O capitalismo formal apenas aprendeu a terceirizar sua ilegalidade — a escondê-la atrás de contratos, zonas econômicas especiais e paraísos fiscais. A 25 de Março não subverte o sistema; ela o expõe em sua forma mais honesta.
A diáspora chinesa que ali se instalou é o retrato em miniatura da globalização: pessoas movendo-se entre fronteiras permeáveis, obedecendo a lógicas de sobrevivência que ignoram tanto o Estado quanto a moralidade.
No topo, importadores e proprietários; na base, vendedores vulneráveis. Entre eles, um espaço cinza, onde a lei é aplicada de modo flexível o suficiente para continuar lucrativa.
Nada disso é escandaloso. É simplesmente o que o homem faz quando não há outra forma de viver.
As análises que falam em “exploração” partem da crença — cada vez mais frágil — de que existiria um capitalismo puro, legal, transparente, do qual esse circuito seria uma distorção.
Mas não há capitalismo sem zonas de sombra. O sistema depende delas tanto quanto depende da luz. São os mesmos mecanismos — a terceirização da culpa, a monetização do risco, a invisibilidade da mão que lucra — que sustentam, em escala global, a ficção da prosperidade.
O comércio informal não é uma falha do mercado: é sua versão natural. Quando as crises vêm, quando o Estado falha, quando o dinheiro escasseia, o homem retorna ao seu instinto original — negociar, trapacear, adaptar-se.
O sociólogo, ao nomear esse processo, talvez o dignifique sem querer. Mas o que há ali não é dignidade nem degradação — é apenas continuidade biológica.
A moralidade nunca existiu como fundamento econômico.
Os mercados não se sustentam pela ética, mas pela utilidade. E a utilidade, como tudo o que é humano, é local e transitória.
A 25 de Março não é um sintoma do colapso da civilização; é um lembrete de que a civilização sempre foi uma forma de disfarçar o colapso.
Os imigrantes chineses, com sua rede silenciosa e disciplinada, não estão destruindo o capitalismo brasileiro — estão simplesmente praticando-o com mais honestidade.
Eles sabem, talvez instintivamente, que a lei é um idioma que se fala com sotaque.
O brasileiro, por sua vez, aprendeu a conviver com o duplo padrão: aplaude a esperteza e denuncia a esperteza alheia.
Assim, a 25 de Março se torna o espelho perfeito de um mundo sem centro moral: todos fingem cumprir regras que ninguém leva a sério.
O Estado finge regular, o vendedor finge obedecer, o consumidor finge ignorar a origem das mercadorias.
É essa simetria de fingimentos que mantém a ordem possível — uma ordem precária, mas suficientemente estável para sobreviver.
Talvez o que mais espante não seja o cinismo dessa economia, mas o fato de que, a despeito dele, ela funcione.
O caos é o habitat natural da espécie.
E o mercado, seja na Bolsa de Nova York ou sob o toldo azul da 25 de Março, é apenas a forma mais engenhosa de torná-lo habitável.
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