Poucos lugares revelam mais sobre nós do que os armários que tentamos manter fechados — não por medo do passado, como gostam de supor os psicólogos amateurs, mas por indiferença prática. O esquecimento, ao contrário do que pregam as religiões seculares do progresso interior, não é um fracasso da alma. É uma estratégia de sobrevivência. A memória, quando desperta, é um animal solto numa casa pequena demais.
Dizem que a vida moderna é saturada de objetos; mas isso é apenas uma forma educada de constatar que as pessoas colecionam simulacros do que não viveram. Tudo aquilo que está encostado no fundo do armário — óculos de armação redonda, um caderno da escola, uma camiseta com o cheiro de um ano que já não existe — não são relíquias de um eu essencial. São resíduos de identidades que nunca chegaram a se completar. A cultura ocidental insiste em falar do “verdadeiro eu” como se fosse uma estátua enterrada num sótão e que só precisa ser desempoeirada. Mas quando abrimos o closet, não encontramos o mármore de uma estátua: encontramos plástico, metal, tecido — matérias que envelhecem sem adquirir sabedoria.
A memória involuntária, esta entidade literária que Proust imortalizou, é frequentemente romantizada como um sopro da transcendência. É mais prudente vê-la como um curto-circuito. Enquanto buscamos o documento burocrático que permitirá ao nosso dia continuar, somos surpreendidos por um objeto sem utilidade aparente, que acende por engano um feixe de conexões nervosas apagadas. A experiência é perturbadora não porque revela algum segredo profundo, mas porque recorda algo que preferimos ignorar: não comandamos o que nos constitui. O passado não retorna para oferecer sentido — retorna para demonstrar que o sentido nunca esteve sob nosso controle.
Cada lembrança que emerge do fundo das gavetas possui a crueldade silenciosa de um animal selvagem. Não anuncia intenções; simplesmente aparece. A psicologia moderna tenta capturá-la com diagnósticos: déficit de atenção, tendências ruminantes, traços de nostalgia. A moral civil das sociedades avançadas, sempre ansiosa por vigiar os desvios, propõe comprimidos para domar esses movimentos inesperados do espírito. A aventura interior, dizem, é sintoma. Mas se existe alguma forma de aventura possível para nós — criaturas que já não acreditam em deuses, nem confiam muito na razão — ela se encontra precisamente nessa falha, nesse tropeço da consciência que abre, por um instante, uma passagem para algo que escapa a qualquer manual.
O objeto encontrado, entretanto, não pede que o veneremos. Ele pode ser descartado sem cerimônia, como fazemos com quase tudo. A maioria das pessoas, como Bento Santiago, fecha o armário com o mesmo zelo com que fecha a narrativa da própria vida. O passado é convocado apenas para legitimar uma acusação, para sustentar um ressentimento, para provar que nunca nos enganamos. A memória involuntária ameaça esse projeto porque não obedece ao princípio de utilidade. Ela oferece vislumbres de alegria sem propósito, lampejos de beleza que não servem para nada — e o ego, que vive de funções e finalidades, sente-se insultado.
É por isso que a maioria sai do closet segurando, não o objeto que brilhou na sombra, mas o documento que permite continuar riscando Xs na agenda. A continuidade — essa ficção de que somos a mesma pessoa que fomos ontem — exige uma devoção diária. Lembrar demais é perigoso: pode dissolver o frágil pacto entre o corpo dolorido e a história que ele repete mecanicamente.
Há quem veja nisso uma tristeza. Mas a visão é ingênua. O ser humano não é feito para uma grande revelação. Somos, na melhor das hipóteses, coletores de fragmentos. Às vezes, um pedaço de metal frio na mão — o aro de um óculos antigo — irradia uma sensação quase gloriosa, e imediatamente desaparece. Nada é recuperado por completo. Nenhuma vida é restaurada como uma restauração de museu. A memória devolve coisas que não pedimos, e recusa as que suplicamos. Não nos recompensa por esforço algum.
Talvez seja esse seu único gesto de liberdade.
O passado, afinal, não é um relicário nem um tribunal; é um depósito indiferente. Não guarda lições nem confissões. Se algo nele parece sagrado, é apenas a persistência inexplicável de um odor, de uma textura, de uma tarde que reaparece sem necessidade. E nisso a vida revela seu caráter mais profundo: não há progresso, não há direção, não há redenção — apenas ciclos de esquecimento interrompidos por acidentes de lembrança.
Se existe sabedoria, ela não está em buscar o tempo perdido, nem em condenar Capitu, nem em tentar reconstruir a própria biografia com a pretensão de dominá-la. Ela talvez resida apenas na capacidade de reconhecer que, ao abrir um armário, entramos num território onde nada nos pertence completamente. Um território onde somos visitantes, não autores.
A memória é uma aventura, sim — mas do tipo que o ser humano suporta apenas em pequenas doses, como quem contempla um animal selvagem através das grades. Aproximar-se demais seria perigoso. Tocá-la de verdade talvez destruisse mais do que ilumina.
E, no entanto, de vez em quando, o animal salta. E nós estremecemos, ainda vivos.
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