I. O vazio como herança moderna
“Falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” Há algo de terrivelmente familiar nessa confissão de Bento Santiago, algo que ecoa nas formas contemporâneas de angústia e autodefinição. Não é apenas a constatação de uma perda interior, mas a descoberta de que a própria identidade é uma construção frágil, instável, e que a tentativa de restaurá-la — pela memória, pela narrativa, pela culpa — é, em última instância, uma forma de autoengano.
Na frase de Machado, o sujeito não lamenta apenas a ausência de algo que o completaria. Ele descobre, horrorizado, que o próprio “eu” é a ausência. Bentinho, como tantos herdeiros do individualismo moderno, percebe que o projeto de uma identidade coerente é uma ficção que não resiste à passagem do tempo. O “eu” a que ele tenta retornar é uma ruína, e o esforço de reconstruí-lo — casa, lembranças, justificativas — só torna mais evidente o abismo.
Esse abismo é o mesmo que define o homem moderno desde Montaigne: a consciência da descontinuidade. O homem que tenta narrar-se descobre que é feito de fragmentos. O medo do narrador machadiano é o medo do filósofo e do cidadão secular — o medo de olhar para dentro e não encontrar ninguém.
II. O tribunal do eu
Bentinho reconstrói sua vida como quem tenta montar um tribunal: ele é juiz, réu, vítima e carrasco. Mas o que está em julgamento não é Capitu — é a própria possibilidade de verdade. Ao transformar sua história em processo, o narrador abdica da inocência da experiência. Ele não quer lembrar; quer provar. E nesse gesto se revela a doença moral de uma época que confunde consciência com justificativa.
Toda confissão é uma forma de poder. Quando Bentinho fala ao leitor, ele busca absolvição; quer que o leitor acredite em sua versão e, ao fazê-lo, confirme sua existência. Mas o que transparece é o oposto: quanto mais ele tenta narrar, mais se dissolve. O homem moderno vive desse mesmo paradoxo — acredita que pode curar a dor da separação interior pela narrativa, quando a narrativa é precisamente o sintoma da separação.
“Falto eu mesmo” é, portanto, o lamento de quem substituiu a fé pela introspecção. No lugar de um Deus que julga, resta o olhar do outro — o leitor, o público, a sociedade — diante do qual o sujeito tenta justificar-se. Mas, sem transcendência, o tribunal torna-se um espelho côncavo: o juiz e o réu se confundem, e o veredito nunca chega.
III. A amizade como espelho e ameaça
Há algo profundamente humano — e trágico — na leitura que aproxima Dom Casmurro de O Conto de Inverno. Ambos expõem o ciúme não apenas como emoção, mas como estrutura ontológica: a impossibilidade de amar sem desejar o olhar do outro. O bromance entre Bentinho e Escobar, tão cuidadosamente insinuado, é o ponto cego do narrador. Ele teme em Escobar o que mais deseja: a confirmação de si.
A amizade masculina, aqui, é uma relação de espelhos. Bentinho admira Escobar, ama Capitu e teme a ligação entre ambos porque intui — sem compreender — que tudo o que sente por eles é uma só coisa: o desejo de ser reconhecido. A mulher e o amigo tornam-se faces do mesmo enigma. O ciúme é o preço pago por quem confunde o amor com a necessidade de identidade.
Nas sociedades antigas, a amizade entre homens podia ser o espaço da virtude compartilhada. Nas modernas, tornou-se uma ameaça à estabilidade do eu. O medo de Bentinho é o medo do homem que não suporta o reflexo do outro dentro de si.
IV. A ilusão da memória
A tentativa de reconstruir o passado — seja por meio da casa, da escrita ou da confissão — é a forma mais elegante da negação. O passado não retorna porque não há sujeito que o convoque inteiro. O narrador de Machado é como um fantasma que tenta explicar sua morte. Ele vive na fronteira entre o que foi e o que poderia ter sido, e cada lembrança é uma invenção a serviço da culpa.
Mas o mais perturbador é que a culpa, em si, é o que o mantém vivo. Ao acusar Capitu, Bentinho encontra uma narrativa que o absolve de encarar a própria vacuidade. O ciúme é uma distração metafísica. Ele substitui o reconhecimento da falência interior por uma explicação moral: “fui traído”. Assim, preserva a ilusão de que houve, um dia, um “eu” inteiro que poderia ter sido feliz.
Na verdade, o que falta a Bentinho não é Capitu, mas a própria capacidade de reconciliar-se com o tempo. Ele se recusa a admitir que o passado é irrecuperável — que a vida, uma vez vivida, não pode ser revisada sem se perder.
V. A moral da lacuna
A frase “Falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” é, paradoxalmente, uma epifania ética. O reconhecimento da falta é o primeiro passo da liberdade. Enquanto Bentinho tenta negar a lacuna, ele permanece prisioneiro do ressentimento. O caminho da compaixão — aquele que o autor do ensaio original vislumbra ao comparar Bentinho a Leontes — é o de quem aceita a ausência como condição da existência.
Machado compreendeu o que os filósofos morais raramente entendem: que a vida não se constrói sobre verdades, mas sobre reconciliações imperfeitas. O homem maduro não é aquele que descobre quem é, mas o que perdeu — e ainda assim continua a viver.
No fundo, o romance é uma parábola sobre o perigo da autoconsciência. A obsessão com a coerência, a necessidade de pureza, a ânsia por uma narrativa total — tudo isso é a própria forma moderna da loucura. A sabedoria está em suportar o fragmento, em aceitar que o eu é uma colagem de papéis contraditórios.
VI. O medo e a misericórdia
O ensaísta brasileiro teme chegar à velhice e ter de narrar sua vida como Bentinho, sem misericórdia. Esse medo é legítimo: ele é o medo da modernidade tardia, em que todos somos instados a justificar-nos diante de uma plateia invisível. Mas a misericórdia que falta a Bentinho — e talvez a nós — não é apenas pelos outros; é, sobretudo, pela própria falibilidade.
Ser moderno é viver num mundo sem tribunal divino, mas com uma consciência implacável. A única absolvição possível é a da ternura: reconhecer que a vida não se explica, apenas se recorda com compaixão.
VII. Epílogo: o silêncio do eu
O verdadeiro horror de Dom Casmurro não está no adultério nem na dúvida, mas no silêncio final: “Falto eu mesmo.” Essa é a frase que resume a condição humana depois da morte de Deus e da dissolução do sujeito. O romance, que começa como ciúme e termina como confissão, é na verdade uma meditação sobre o desaparecimento do eu no espelho da memória.
Bentinho queria provar uma verdade; Machado nos mostrou uma ausência. E é essa ausência — esse espaço vazio entre o que fomos e o que contamos ser — que constitui, paradoxalmente, a nossa única realidade.
A lacuna é tudo. O resto é literatura.

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