Há um aspecto curioso — e, ao mesmo tempo, profundamente sintomático — na obra e na figura de Sophie Calle, essa artista que transforma lacunas em fetiches, ausências em fetos simbólicos e o vazio cotidiano em dramaturgia de si mesma. Não me refiro ao seu talento, que é inegável, mas ao modo como sua arte funciona como exemplo perfeito da confusão mental da modernidade tardia: a substituição progressiva da experiência direta pela mediação teatralizada.
A anedota narrada sobre a tal Mâkhi — a mulher incapaz de visitar o apartamento herdado e que convoca Calle como exploradora do mundo dos mortos — não é apenas um episódio pitoresco. Ela é o sintoma de um problema espiritual mais amplo: perdemos a coragem de olhar a realidade nos olhos e terceirizamos até mesmo o encontro com nossos fantasmas.
E é justamente nesse ponto que Calle aparece como heroína — não porque enfrenta as sombras, mas porque fabrica sombras melhores, mais fotogênicas, mais narráveis, mais digeríveis para uma cultura que precisa transformar tudo em performance para suportar o peso do real.
A artista como deputada do mundo interior
Quando Calle aceita o pedido de Mâkhi e visita o apartamento das irmãs mortas, ela assume um posto que já não pertence aos artistas, mas que há séculos era reservado aos sacerdotes, filósofos, eremitas e diretores espirituais: o de mediadores do invisível.
Mas ela o faz ao estilo contemporâneo: sem metafísica, sem escatologia, sem transcendência — apenas com uma câmera e uma noção performática do “eu”.
O mundo moderno reduziu a experiência espiritual a uma estética da sensibilidade.
Não é à toa que o livro se chama Histórias reais: nada é mais fictício do que a obsessão moderna pela realidade. Quando alguém precisa advertir que algo é “real”, já não estamos no reino do real, mas no reino do marketing. É o mesmo que colocar um aviso “não mergulhe” para que todos sintam aquela coceira infantil de pular na água proibida.
A própria palavra “real” tornou-se isca literária, não garantia ontológica.
O culto contemporâneo da carta perdida
As cartas mencionadas por Calle — encomendas sentimentais, mensagens adulteradas, bilhetes deslocados da intenção original — são relíquias de um mundo que perdeu o sentido das palavras.
A carta sempre foi uma extensão da alma, um risco assumido: você escreve para alguém e confia sua interioridade ao julgamento desse outro. A carta é uma flecha lançada na direção do destino moral.
Calle, porém, transforma a carta no oposto disso: não uma oferta da alma, mas uma fabricação da alma; não um risco, mas um artesanato; não uma confissão, mas um adereço.
Ela encomenda o amor como quem encomenda um objeto — porque o amor, tal como é vivido na sociedade do espetáculo, não passa de um artefato emocional de prateleira.
E quando encontra a carta destinada a “H.” e substitui a inicial por “S.”, ela realiza, talvez sem perceber, o rito máximo da modernidade: o sujeito usurpa o lugar da realidade para colocar a si mesmo como centro gravitacional do sentido.
A ficção não está mais no texto: está na consciência de quem o manipula.
A pergunta mais terrível do século
No meio de um questionário médico ridiculamente prolixo, surge a pergunta: “Você é uma pessoa triste?”
Essa é a única pergunta sincera, e por isso mesmo é a única literária, a única humana, a única que corta o verniz performático que nos cobre desde o nascimento até a morte.
Toda a arte de Calle gira em torno disso: a tentativa de responder à tristeza essencial com ruídos, com imagens, com performances, com uma engenharia estética que tenta substituir o real por seu simulacro digestivo.
O teatro do vazio
No final, o que sobra?
Uma mulher adulta recordando o trauma infantil de ser deixada de lado por outras crianças que corriam e cochichavam — símbolo perfeito da nossa civilização: todos querem ser vistos, ninguém quer ver; todos querem ser seguidos, ninguém quer seguir.
O primeiro grito de Calle — “me espera!” — ecoa ainda hoje: é o grito de uma sociedade inteira pedindo atenção, validação e plateia.
Mas a verdadeira tragédia não é sermos invisíveis.
A verdadeira tragédia é que, para sermos vistos, aceitamos nos tornar personagens.
E assim caminhamos, geração após geração, cada vez mais longe da realidade, cada vez mais perto do abismo luminoso das telas, dos stories, das narrativas inventadas, dos “reais” tão falsos quanto ficções.
Sophie Calle apenas revela, com elegância e estilo, aquilo que se tornou o dogma supremo do mundo contemporâneo:
Se o real não nos satisfaz, encenemos algo melhor.
E, como sempre, pagaremos o preço: o nada retorna, o ninguém retorna, o fantasma retorna — mas agora domesticado, fotografado, estetizado.
Um fantasma de boutique.
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