Poucos artistas tornam tão evidente a precariedade de nossas devoções quanto Morrissey. O simples ato de gostar dele já parece exigir uma espécie de estoicismo sentimental, como se o apreço fosse um fardo a ser carregado com a mesma resignação com que suportamos as imperfeições inevitáveis da vida moderna. Ao revisitar o período que verdadeiramente importa—até 1987, com a dissolução dos Smiths, e depois, talvez, até Vauxhall and I—percebemos que a admiração que nutrimos por ele é sempre acompanhada por um cansaço. Não um cansaço trivial, mas aquele exaurimento que surge quando reconhecemos, com relutância, que aquilo que nos formou já não nos acompanha.
Gostar de Morrissey é encarar, repetidas vezes, a deterioração de um mito que insiste em sobreviver à sua própria verdade.
Os seres humanos são movidos por mitos, não por doutrinas racionais. Morrissey, nesse sentido, opera como um mito particularmente incômodo: seu romantismo só funciona enquanto dissolução completa da fronteira entre artista e obra. Não há distância crítica possível, porque o próprio projeto estético dele rejeita essa separação. Os sofrimentos da juventude, o fascínio pela tristeza, a autopiedade narcísica — tudo isso não é apenas material para canções, mas o tecido de uma persona que exige nossa cumplicidade. Não se trata de arte que transcende o artista; trata-se de arte que o reproduz, intacto, com todas as suas arestas.
Por isso, a misantropia que aparece nas memórias e nas letras não pode ser descartada como mero artifício. Ela está entranhada na obra, como se a crueldade fosse um modo de tornar o mundo tolerável. O catálogo de alvos é vasto: imigrantes, grávidas, crianças, pacientes de hospital, banhistas felizes. Em qualquer outro artista, poderíamos diagnosticar ressentimento. Em Morrissey, trata-se de método: a recusa deliberada das virtudes modernas, a negação de uma fraternidade humana sempre proclamada, raramente sentida. Sua compaixão, quando aparece, é desviada para os mortos, os fracassados, os personagens literários, os animais cuja inocência é tanto uma condição biológica quanto uma fantasia moral.
Esse deslocamento afetivo revela algo essencial. Buscarmos salvação moral em figuras públicas é um erro tipicamente moderno, derivado da crença ingênua de que indivíduos podem encarnar a pureza que as instituições não entregam. Morrissey expõe esse erro porque sua obra sempre negou a própria ideia de redenção. Mesmo nos momentos de doçura — There Is a Light That Never Goes Out — existe a sombra de uma entrega que depende da aniquilação. A beleza é inseparável da morbidez. O amor, da renúncia. A vida, da recusa em aceitá-la.
Ainda assim, durante muito tempo, sua ambiguidade nos salvou. A autoironia, a teatralidade, o topete insinuante, a voz que oscilava entre ternura e desprezo — tudo isso mantinha um frágil equilíbrio. Havia graça na crueldade, havia humor no desespero, e a combinação produzia um tipo raro de beleza: aquela que nasce da contradição e se sustenta justamente porque nunca se resolve por inteiro. Essa dubiedade é que permitiu que continuássemos ao lado dele, mesmo quando o mundo parecia movido por uma crença crescente na pureza moral e na correção de conduta. Morrissey era o lembrete incômodo de que nem a arte nem a vida funcionam segundo regras tão simples.
Mas toda ambiguidade, quando esticada demais, finalmente rompe. Na fase tardia, seja qual for o nome que se queira dar a ela, o que era ironia tornou-se mofo. O frescor que um dia emanava da tensão entre o desprezo e a ternura evaporou-se, deixando apenas a rigidez de convicções que já não seduzem, apenas cansam. E o admirador — esse ser melancólico que insiste em revisitar as ruínas do próprio gosto — precisa agora admitir que a beleza que o tocava continua ali, mas cercada por zonas de sombra cada vez mais árduas de atravessar.
É nesse ponto que o dilema se torna inevitável: como continuar amando aquilo que, pouco a pouco, se degrada diante de nossos olhos? A crença no progresso — seja moral, estético ou biográfico — é apenas um consolo metafísico. Nada garante que artistas amadureçam. Nada assegura que evoluam. Nada impede que entrem em declínio. A suposição contrária é apenas mais um mito moderno. Morrissey, em sua franqueza brutal, talvez seja apenas um dos poucos que nos obriga a reconhecer essa verdade.
E, no entanto, há uma espécie de catarse possível nesse reconhecimento. Quando finalmente aceitamos que o artista não tem obrigação de corresponder às projeções que depositamos nele, algo dentro de nós se liberta. Abandonamos a busca infantil por heróis coerentes, compreendemos que a beleza que nos formou não precisa permanecer intacta para continuar sendo nossa. O que Morrissey foi — não o que é — segue vibrando no presente, porque a experiência estética não depende da integridade moral do criador, mas da intensidade com que nos atravessou.
O cansaço de gostar de Morrissey, então, transforma-se. Deixa de ser frustração e torna-se maturidade. Deixa de ser lamento e torna-se lucidez. Reconhecemos que a obra é finita, que o artista é falho, que a devoção é sempre arriscada. E, nesse instante, aprendemos algo que talvez o próprio Morrissey tentou nos ensinar desde o início: que a luz que nunca se apaga não ilumina o artista, mas sim o lugar que a arte ocupou dentro de nós.
A catarse não está no perdão nem no esquecimento. Está na aceitação plena de que é possível honrar o passado sem aprisioná-lo, e possível caminhar adiante com as ruínas sem desejar reconstruí-las.
E assim, cansados, lúcidos, mas de algum modo aliviados, deixamos Morrissey onde ele sempre esteve: não no pedestal impossível dos gênios imaculados, mas na zona cinzenta dos humanos que, por um breve e fulgurante período, conseguiram dizer algo verdadeiro demais para ser esquecido.
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