Entre terreiros, fazendas e bairros de Ipiaú, a memória de um sambador de cocos e cantador de Reis revela como a cultura popular resiste ao tempo, sustentada pela voz coletiva, pela fé e pela insistência em não deixar a tradição morrer
Por Samio Cássio*
A primeira coisa que se ouve quando se fala de Ipiaú não é o barulho do trânsito nem o apito distante de alguma fábrica inexistente. O que ecoa, para quem escuta com atenção, é um compasso antigo: o pé batendo no chão de terra, a palma da mão marcando o tempo, a voz puxando o verso que o coro responde. Essa cadência atravessou décadas, correu por terreiros, fazendas e bairros, e encontrou em um homem chamado Zaqueu — ou Mestre Zaqueu — um de seus principais guardiões.
Esta reportagem é um exercício de escuta. O que se conta aqui foi tecido pela memória coletiva de quem conviveu com Zaqueu no Cantinho do Céu, no bairro Euclides Neto e nas andanças do Terno de Reis. As falas foram preservadas em sua oralidade original, não como recurso estilístico, mas como gesto de respeito. Porque, em Ipiaú, a história sempre foi contada assim: de boca em boca, de canto em canto.
Um tempo em que a cidade cantava
Entre as décadas de 1960 e 1990, Ipiaú viveu um período de intensa efervescência cultural. O samba de coco, o Terno de Reis, as rezas coletivas, os cordões de caboclos das micaretas, o bumba-meu-boi e outras manifestações populares ocupavam o calendário e o cotidiano. Não eram eventos isolados, mas formas de convivência. O festejo fazia parte da vida comum.
O coco — manifestação cultural e estilo musical originário do litoral do Nordeste, com raízes indígenas e africanas — encontrava ali terreno fértil. Cantado em roda, marcado pelo ritmo do corpo e pela repetição coletiva, ele servia tanto à celebração quanto à memória. O Terno de Reis, inspirado na jornada bíblica dos três Reis Magos, cumpria função semelhante: percorria casas, fazendas e bairros, levando cantoria, devoção e pertencimento.
Hoje, grande parte dessas práticas se enfraqueceu. A juventude, atravessada por linguagens e ritmos contemporâneos, muitas vezes desconhece o que veio antes. Ainda assim, como lembram os mais velhos, o novo não precisa apagar o velho. Em Ipiaú, a cultura segue viva justamente nesse diálogo tenso entre permanência e mudança.
Zaqueu antes de ser Mestre
Zaqueu nasceu em 1918, na zona rural de Ipiaú, em uma região conhecida como Bom Sem Farinha, que à época integrava o antigo distrito de Rio Novo. O próprio território ainda buscava nome e forma: Ipiaú foi chamada de tudo um pouco antes de se fixar como município, reflexo de um espaço em constante transformação territorial e identitária.
Filho de Cesária de Jesus e Nelau Damião dos Santos, Zaqueu carregava uma herança indígena direta: seu avô era indígena. Essa ancestralidade, dizem os que conviveram com ele, talvez explique sua inclinação natural para o coco — ritmo coletivo, oral, marcado pelo corpo e pela memória. Não por acaso, todos os seus irmãos também eram sambadores. A música, ali, não era escolha individual, mas ambiente.
Mais tarde, Zaqueu se estabeleceu no bairro Euclides Neto, onde viveu por muitos anos. Foi ali que consolidou sua atuação como cantador de cocos, folião do Terno de Reis, rezador eventual e presença indispensável nas celebrações populares. Trabalhador da fazenda do senhor Valdomiro Barreto, dividia o tempo entre o labor diário e a vida cultural da comunidade.
Zaqueu nasceu em 1918, na zona rural de Ipiaú, em uma região conhecida como Bom Sem Farinha, que à época integrava o antigo distrito de Rio Novo. O próprio território ainda buscava nome e forma: Ipiaú foi chamada de tudo um pouco antes de se fixar como município, reflexo de um espaço em constante transformação territorial e identitária.
Filho de Cesária de Jesus e Nelau Damião dos Santos, Zaqueu carregava uma herança indígena direta: seu avô era indígena. Essa ancestralidade, dizem os que conviveram com ele, talvez explique sua inclinação natural para o coco — ritmo coletivo, oral, marcado pelo corpo e pela memória. Não por acaso, todos os seus irmãos também eram sambadores. A música, ali, não era escolha individual, mas ambiente.
Mais tarde, Zaqueu se estabeleceu no bairro Euclides Neto, onde viveu por muitos anos. Foi ali que consolidou sua atuação como cantador de cocos, folião do Terno de Reis, rezador eventual e presença indispensável nas celebrações populares. Trabalhador da fazenda do senhor Valdomiro Barreto, dividia o tempo entre o labor diário e a vida cultural da comunidade.
“Zaqueu do samba, da viola e do pandeiro”
Quem conta essa história com precisão afetiva é Dona Ilzete, conhecida como Zete, filha de Zaqueu. Em entrevista concedida em 5 de dezembro de 2025, ela desenha o retrato de um homem que era, ao mesmo tempo, pai, trabalhador e mestre da cultura popular.
“Meu pai era conhecido como Mestre Zaqueu, ou Zaqueu do samba, da viola e do pandeiro”, ela diz. Nas festas de Reis, era figura indispensável. Saía para cantar como folião do Terno de Reis e, muitas vezes, só voltava no dia seguinte, depois de percorrer casas e fazendas em longas jornadas de canto e devoção.
A música atravessava toda a família. Zaqueu e os irmãos participavam dos sambas de coco e dos ternos, e, na comunidade, todos se chamavam de “irmãos” nas cantorias. Era um parentesco construído pelo ritmo e pela convivência.
Dona Ilzete lembra também de um episódio que resume o caráter do pai. Quando ela era criança, um cigano a pegou no colo em tom de brincadeira. Zaqueu, ainda coberto de cacau do trabalho na roça, correu desesperado para defendê-la. “Ele era assim”, diz ela, “carinhoso, protetor, muito humano”. Zaqueu morreu em 2005, aos 86 anos.
O avô que fazia a festa acontecer
Alex Sousa, neto de Zaqueu, fala do avô como quem descreve um estado de espírito. “Alegria, força e tradição”, resume. No Cantinho do Céu e no bairro Euclides Neto, Zaqueu era a voz que animava as noites. Cantador do Terno de Reis, sambador de cocos, bastava ele começar a cantar e bater o pé no terreiro para a festa ganhar vida.
Zaqueu foi um dos primeiros moradores do bairro Euclides Neto e ajudou a formar a comunidade. Nas festas de Reis, segundo Alex, ele era o destaque final. “Sem ele, parecia que faltava alguma coisa.” Havia também a parceria sólida com Valdomiro, marcada por amizade e respeito mútuos.
Alex recorda ainda as tradições familiares: a criação de porcos, as festas de São João que reuniam o povo, as conversas longas. Confirma, sem hesitação, a ascendência indígena do avô. O legado, diz ele, permanece vivo não só na memória, mas no modo como a comunidade ainda se reconhece.
A turma de Zaqueu
Valdomiro Barreto, conhecido como Coveiro, é hoje o único vivo daquele tempo. Ele e o filho, Gilvando — o Gazo — guardam lembranças e uma responsabilidade. Valdomiro descreve Zaqueu como “parceiro de verdade”, alguém que cantava coco, Terno de Reis, chula, samba e tudo o que surgisse nas rodas. Zaqueu transitava entre casas, fazendas e bairros, sempre em busca do encontro musical.
Gazo fala com a emoção de quem herdou um compromisso. “Meu pai sentiu muito quando Zaqueu se foi. Ficou um tempo mais quieto, porque os dois eram parceiros de verdade.” Ele se lembra das palavras que ouviu ainda jovem: “Gazo, não deixe essa tradição cair, não. Entre mim e você, nós fazemos alegria. Eu estou indo, mas a tradição fica com vocês.”
Nos encontros, faziam de tudo: samba de roda, cantos de Reis, chulados. Contavam casos, lembravam das coisas antigas, riam muito. “Era felicidade de verdade”, diz Gazo. Onde Zaqueu chegava, levava paz, união e bom humor. “O pessoal logo dizia: ‘A turma de Zaqueu chegou!’”
Antes de morrer, Zaqueu deixou um pedido claro: que a tradição não acabasse, mesmo que fosse mantida apenas dentro de casa. Continuar, para eles, é uma forma de honra.
Mulheres da memória
Dona Carmelita, esposa de Valdomiro, completa o quadro. Ela lembra das rodas de samba que reuniam dezenas de pessoas, de Zaqueu tocando coco e samba com naturalidade, como quem respira. No Terno de Reis, recorda, os grupos percorriam longos caminhos levando cantoria e fé, fortalecendo laços de identidade comunitária.
O que fica
A memória coletiva, como lembra Maurice Halbwachs, é formada por lembranças individuais, mas se consolida socialmente. Cada pessoa guarda um ponto de vista, e é na soma deles que a história se sustenta. Jacques Le Goff vai além: a memória não é apenas herança, é também instrumento e objeto de poder.
Em um cenário em que narrativas populares são frequentemente marginalizadas, registrar essas vozes é um gesto de resistência. Zaqueu encontrou na música — especialmente no coco e no Terno de Reis — uma forma de expressão cultural e de fortalecimento comunitário. Entre as décadas de 1960 e 1990, teve papel decisivo na difusão do samba de coco em Ipiaú, ajudando a consolidar práticas que ainda hoje compõem a identidade do município.
O pé que batia no chão já não bate mais. A voz que puxava o verso silenciou. Mas, enquanto alguém repetir o refrão, enquanto uma roda se formar, enquanto houver quem diga “a turma de Zaqueu chegou”, a memória seguirá viva — não como nostalgia, mas como presença.
A memória coletiva, como lembra Maurice Halbwachs, é formada por lembranças individuais, mas se consolida socialmente. Cada pessoa guarda um ponto de vista, e é na soma deles que a história se sustenta. Jacques Le Goff vai além: a memória não é apenas herança, é também instrumento e objeto de poder.
Em um cenário em que narrativas populares são frequentemente marginalizadas, registrar essas vozes é um gesto de resistência. Zaqueu encontrou na música — especialmente no coco e no Terno de Reis — uma forma de expressão cultural e de fortalecimento comunitário. Entre as décadas de 1960 e 1990, teve papel decisivo na difusão do samba de coco em Ipiaú, ajudando a consolidar práticas que ainda hoje compõem a identidade do município.
O pé que batia no chão já não bate mais. A voz que puxava o verso silenciou. Mas, enquanto alguém repetir o refrão, enquanto uma roda se formar, enquanto houver quem diga “a turma de Zaqueu chegou”, a memória seguirá viva — não como nostalgia, mas como presença.

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