Nada revela mais sobre a natureza paradoxal do reconhecimento humano do que o momento em que ele finalmente chega. Poucos rituais contemporâneos condensam essa ironia com a clareza do Prêmio Nobel de Literatura, que há muito se converteu em uma espécie de canonização secular. Nele projetamos a expectativa de que uma vida inteira de trabalho encontre sua conclusão, como se o gesto simbólico da coroa encerrasse um percurso e justificasse todas as renúncias. Mas, como tudo o que é verdadeiramente humano, o ato de coroar está impregnado de ambivalência. A consagração muda o escritor menos pelo que afirma do que pelo que exige.
Jon Fosse, ao receber o Nobel em 2023, parece ter experimentado esse deslocamento com intensidade particular. Em vez de apenas júbilo retrospectivo, houve alívio — como se o prêmio encerrasse um ciclo que ele próprio não desejava continuar. “Heptalogia”, a obra mais longa que escreveu e que agora chega ao Brasil, representa não apenas um ápice literário, mas também o limite até o qual seu modo de existência como escritor podia ser sustentado. O texto surge quase como uma obra inconcebível após a fama, uma criação que só pôde existir em um momento anterior ao tumulto das expectativas.
Esse ponto é crucial: para Fosse, a escrita é inseparável da escuta —uma atitude de atenção rara, quase ascética, que pressupõe um tipo de silêncio interior que o mundo das celebridades conspira para destruir. Em entrevista, ele descreve o período pós-Nobel como um regime de interrupções contínuas. É significativo que a palavra usada por ele —interrupção— pertença tanto ao vocabulário do cotidiano quanto ao da metafísica. Pois, na verdade, o que se interrompe não é a rotina, mas o frágil processo pelo qual uma obra emerge. A criação literária, como a concebemos desde o romantismo, exige que o autor seja sujeito; no entanto, a fama exige que ele seja objeto.
Essa transmutação é uma das ironias mais persistentes da modernidade. Vivemos em sociedades que celebram indivíduos criativos enquanto fazem o possível para torná-los inacessíveis a si mesmos. A própria ideia de realização se desconecta da experiência íntima que a torna possível. O Nobel, longe de ser apenas um tributo ao passado, torna-se um vetor que reconfigura o futuro do escritor. Como diz Fosse, passa-se “de sujeito a objeto”. É um destino quase ritual: aquele que alcança o ápice é sacrificado à visibilidade.
Este tipo de narrativa ressoa profundamente. A crença no progresso —inclusive o progresso individual— é uma ilusão que projetamos no mundo para domesticar a contingência. Supomos que a vida criativa, se bem sucedida, levará a uma forma de repouso, a um ponto de chegada que justificará todos os esforços anteriores. Mas a lógica da existência humana é outra: aquilo que tomamos por conclusão não passa de deslocamento. A linha do tempo pessoal não culmina em sentido; apenas se converte em outra coisa, muitas vezes indesejada.
Fosse, que sempre escreveu a partir de zonas de silêncio, encontra-se agora transformado em produtor de discursos públicos, performances discursivas, justificativas a respeito de sua própria obra. Ele recusa a maior parte dos convites, mas até o ato de recusar consome tempo e energia. A celebridade lhe impõe uma nova economia psíquica: gerir, limitar, filtrar, afastar o excesso —como se estivesse constantemente podando ruídos para tentar resgatar algum fragmento de quietude interior, condição para que continue escrevendo.
Há quem veja nisso um drama trivial da vida artística, mas o fenômeno é mais revelador: mostra o quanto a sociedade contemporânea infiltra a lógica da exposição em todos os domínios. Ser reconhecido hoje não significa apenas ser lido ou apreciado; significa ser capturado por expectativas externas que se sobrepõem à própria obra. A literatura, nesse contexto, torna-se quase um subproduto do aparato de visibilidade que a cerca. E é por isso que “Heptalogia” —uma obra monumental escrita antes dessa avalanche— se converte em testemunho de um tempo que já não existe mais para seu autor.
No entanto, há também algo de profundamente humano no modo como Fosse responde à situação. Apesar das distrações, ele continua escrevendo: peças, uma novela, e agora o primeiro romance de uma nova trilogia. Isso não é sinal de superação, mas de continuidade —um conceito que frequentemente contrasta com a ideia ilusória de progresso. Continuar não é triunfar; é apenas persistir na atividade que dá forma à própria existência. A literatura de Fosse, marcada pela repetição, pelo silêncio e pelo despojamento, talvez já antecipasse essa condição: escrever não como promessa de transcendência, mas como forma de permanecer no mundo mesmo quando o mundo insiste em transformá-lo em outra coisa.
O caso de Fosse nos lembra que nenhuma consagração resolve a tensão fundamental entre o indivíduo e sua obra. A vida depois da coroação não é uma vida mais plena; é apenas outra vida, sujeita às mesmas ironias que afetam todas as biografias humanas. O escritor celebra, mas também lamenta; conquista o reconhecimento, mas perde parte da liberdade interior que o levou a escrever. Tal é a lógica do destino humano: tudo o que se obtém tem seu preço, e raramente sabemos calculá-lo antes que seja tarde demais.
Se existe sabedoria nessa história, ela não está na glória do Nobel, mas no desconforto que ele gera. Pois é desse desconforto —desse atrito entre o que desejamos e o que realmente ocorre— que se pode entrever a estrutura trágica da vida humana, uma estrutura que nenhuma narrativa de progresso é capaz de eliminar. Jon Fosse, ao reconhecer sua própria transformação de sujeito em objeto, apenas dá voz a uma verdade antiga: toda realização carrega em si o germe de sua perda. E talvez seja justamente na aceitação dessa ironia que o escritor reencontre seu silêncio, e nele, a possibilidade de continuar criando.
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