Há um tipo de arqueologia perversa que só pode florescer em plataformas digitais. Nas áreas de comentários de vídeos do rock/pop brasileiro dos anos 1980 e 1990, emerge um Brasil que jamais existiu senão como ficção retrospectiva. Ali, canções leves, muitas vezes despretensiosas – lembranças desbotadas de uma indústria fonográfica oligárquica – adquirem a gravidade simbólica de marcos fundadores. Para um pequeno exército de comentaristas anônimos, tudo o que veio depois é decadência moral; tudo o que existiu antes, uma espécie de renascença tropical perdida.
Mas o objeto dessa devoção não é a música. É o próprio passado, reconstituído como um amuleto contra a desintegração do presente. Se a modernidade tardia se caracteriza por uma sensação difusa de esgotamento, esses indivíduos recorrem à cultura pop como quem apalpa os bolsos procurando um documento de identidade há muito extraviado. Há algo de trágico nisso: não a perda do passado, mas a recusa em admitir que ele jamais correspondeu ao ideal imaginado. A nostalgia, como ensinou a história política do século XX, é um recurso inesgotável para a fabricação de mitos. E mitos, sobretudo quando evocam pureza, são sempre preâmbulo de projetos excludentes.
O mais revelador, porém, não é a operação nostálgica em si, mas seu subtexto político. O elogio do Brasil musical “antes da corrupção estética” e a condenação dos gêneros populares contemporâneos como sinais de degeneração não diferem muito das narrativas civilizacionais que alimentam movimentos reacionários mundo afora. A lógica é invariavelmente a mesma: para justificar a aversão ao presente, inventa-se um passado harmônico; para legitimar a superioridade de um estilo, demoniza-se o que escapa às suas fronteiras. Nesse sentido, a defesa de uma suposta “época de ouro” do rock nacional funciona como um simulacro do que na Inglaterra se chamou de “declínio moral da nação”, na Rússia de Putin virou “resgate dos valores tradicionais” e nos Estados Unidos se converteu no slogan make something great again.
Também aqui, no Brasil, o mecanismo é menos musical do que sociológico. O rock dos anos 1980 nunca foi o retrato de um país inteiro; era o produto de uma elite cultural jovem, branca e urbana, amplificada por meios de comunicação igualmente restritos. Atribuir a esse repertório um estatuto universal é menos um erro histórico e mais um gesto de autoengano político. É a tentativa de preservar um mundo social que se dissolveu quando a música – e o país – se tornaram menos dependentes das plataformas tradicionais de legitimação.
Essa metamorfose retrospectiva tem precedentes. O filósofo Isaiah Berlin descreveu como figuras intelectuais do século XIX foram sendo absorvidas por tradições políticas às quais jamais pertenceram. A apropriação é sempre um gesto de força: quando o presente é incapaz de produzir símbolos, busca-se no passado alguma autoridade capaz de legitimar nossas aflições. No caso de Renato Russo, a distorção torna-se ainda mais eficiente porque a matéria-prima já era dúbia. Letras como Será ou Que País É Esse? carregam um inconformismo suficientemente genérico para serem mobilizadas por qualquer facção que pretenda denunciar um sistema hostil.
Essa plasticidade explica por que simpatizantes de movimentos autoritários, décadas depois, encontram nessas músicas não apenas crítica social, mas um suposto prenúncio moral do bolsonarismo – a crença de que o mundo “desandou” e de que apenas um retorno às virtudes antigas pode restaurar a ordem. A memória coletiva se converte, assim, em palimpsesto: cada geração raspa um pedaço da superfície e escreve novamente aquilo que deseja ver. O resultado não é uma compreensão mais profunda do passado, mas a reprodução ampliada de seus equívocos.
O fenômeno ecoa transformações semelhantes ocorridas em outras culturas. A reinterpretação de Bob Dylan por setores conservadores nos Estados Unidos e a apropriação de Morrissey por grupos identitários da direita europeia revelam o mesmo mecanismo: a arte é capturada por projetos políticos que necessitam de legitimidade estética. Há uma ironia amarga nisso. O artista que buscou, ainda que imperfeitamente, expandir as fronteiras de sensibilidade acaba mobilizado por aqueles que querem restringi-las.
A recepção tardia de Renato Russo, portanto, não é apenas um episódio de nostalgia equivocada. É sintoma de algo mais profundo: a transformação da cultura pop em terreno de batalha moral. Quando comentaristas no YouTube idealizam os anos 1980 como um período de pureza civilizatória, não estão fazendo musicologia; estão praticando política de identidade, ainda que não se deem conta. E é justamente essa política, travestida de saudade, que permite que discursos regressivos se infiltrem num repertório que nasceu em meio à abertura democrática, quando nada era mais urgente do que a ampliação de vozes.
A trajetória de Lobão oferece um contraste quase didático com a recepção tardia de Renato Russo. Se no caso da Legião Urbana a apropriação política é obra principalmente do público, em Lobão vemos um artista que decidiu ele próprio converter a rebeldia juvenil em plataforma ideológica. Não porque tenha mudado essencialmente, mas porque envelheceu dentro de um imaginário que já não encontrava lugar em um ecossistema cultural democratizado. E, como ocorre com tantos herdeiros tardios da contracultura, transformou a sensação de irrelevância em cruzada moral.
Esse movimento é menos surpreendente quando observado à luz da história intelectual. Muitos libertários radicais dos anos 1960 e 1970, incapazes de lidar com a desordem social que ajudaram a provocar, migraram para formas de conservadorismo ressentido na maturidade. O impulso é semelhante: a rebeldia que um dia pareceu sinônimo de emancipação se transfigura em desejo de restaurar um passado imaginário no qual o mundo era legível, hierárquico e supostamente meritocrático. Lobão encarna esse arco com precisão desconfortável.
Desde os anos 1980, suas letras apresentavam um individualismo aguçado, uma recusa quase instintiva a qualquer ideia de pertencimento coletivo, traço que pode ser virtuoso para a arte e desastroso para a política. A crítica a instituições poderosas – gravadoras, emissoras de televisão, elites culturais – funcionava, naquele momento, como gesto libertário. Mas, à medida que o país se transformava e novos atores culturais emergiam, esse mesmo impulso começou a operar como ressentimento. Era como se ele continuasse a guerrear contra um establishment que havia deixado de existir, enquanto ignorava o novo cenário em que a própria cultura havia sido descentralizada.
Há paralelos evidentes com escritores como Michel Houellebecq, que, incapazes de acompanhar a pluralização de sensibilidades no mundo contemporâneo, converteram sua melancolia em denúncia sistemática das transformações sociais. A diferença é que, no caso brasileiro, o ressentimento encontrou uma direita carente de símbolos artísticos e ansiosa por recuperar a aura de rebeldia que perdeu há décadas. Lobão forneceu justamente o que buscavam: uma narrativa simples, quase maniqueísta, na qual o declínio do país coincidia com seu próprio declínio como figura cultural central.
Esse processo revela algo maior do que a singularidade biográfica do cantor. Ele desnuda o ponto cego de uma geração que, criada em condições sociológicas profundamente restritas – poucas rádios, poucos canais, pouca circulação –, confundiu sua posição privilegiada com universalidade cultural. Quando o país se democratiza, quando vozes periféricas ultrapassam as fronteiras que antes as contiveram, aquilo que era vivido como expressão “da juventude” se revela como produto de uma elite estreita. A reação é previsível: ressentimento, nostalgia, tentativa de restaurar uma hierarquia simbólica perdida.
O que vemos, portanto, não é apenas a guinada política de um indivíduo, mas um arquétipo: o artista que, incapaz de abandonar o modelo de protagonismo que o formou, converte frustração em moralismo. E esse moralismo torna-se combustível para um discurso político regressivo que se alimenta de símbolos culturais destituídos de complexidade.
A conversão tardia de Renato Russo em ícone disputado por discursos inconciliáveis não decorre apenas da popularidade de suas músicas, mas da própria arquitetura de sua obra. A Legião Urbana sempre trabalhou com narradores intercambiáveis, perspectivas móveis, personagens que apareciam e desapareciam como se o eu lírico fosse uma oficina instável de sensibilidades (para uma melhor compreensão, recomendo a leitura de A morte do autor, do Roland Barthes e A cicatriz de Ulisses, do Erich Auerbach). Essa multiplicidade — rara num país acostumado a entender canção como confissão direta — produziu um efeito colateral inevitável: a obra se tornou disponível demais para interpretações que jamais foram suas.
As artes são prolíficas em casos assim. Pense-se em Franz Kafka, reivindicado por bolcheviques e liberais, ou em Pasolini, ora tratado como mártir revolucionário, ora como moralista ferido pela modernidade. Todo artista que cria a partir do deslocamento — seja ele estético, existencial ou político — corre o risco de ser assimilado por forças que nada têm a ver com seu impulso original. Renato Russo, com seu repertório de vozes emprestadas, tornou-se um terreno fértil para essas reapropriações errantes.
Há, no entanto, uma particularidade brasileira. As vozes que Renato incorporava não eram apenas recursos narrativos; eram tentativas de atravessar barreiras sociais num país em que as classes raramente se cruzam fora da ficção. Quando o filho da classe média brasiliense escreve sobre operários, meninos de favela, vestibulandos ansiosos ou figuras alegóricas, ele está tentando construir pontes simbólicas num território que sempre naturalizou abismos. Isso, nos anos 1980, tinha algo de ousadia: era um convite à expansão da sensibilidade, não à sua domesticação. Hoje, porém, esse mesmo gesto é reinterpretado sob um prisma cultural muito distinto, que exige precisão identitária lá onde antes se buscava porosidade.
Ao mesmo tempo, essa abertura múltipla gerou um segundo efeito mais perturbador: um inconformismo difuso, concebido originalmente como crítica às estruturas fechadas da ditadura tardia, tornou-se facilmente transmutável em fúria antipolítica. Letras como Que País É Esse? foram arrancadas do solo histórico que lhes dava sentido e recolocadas em arenas onde a denúncia se converte em ressentimento. Não importa que a música fale de corrupção sistêmica durante a transição democrática; para muitos dos seus consumidores contemporâneos, ela expressa apenas o desejo de purificação nacional, uma fantasia que costuma desembocar em autoritarismo.
Esse tipo de deslocamento não é fenômeno isolado. A trajetória de Morrissey — outrora patrono de sensibilidades marginais, hoje frequentemente evocado por segmentos xenófobos e nacionalistas — mostra como um artista que trabalha com deslocamentos subjetivos pode se tornar mascote involuntário de ideologias que desprezariam seus melhores momentos. A analogia não é moral, mas estrutural: quando a obra opera por fissuras, o público tende a preenchê-las com aquilo que lhe falta, e não com aquilo que o artista pretendia dizer.
Assim também ocorre com Renato Russo. Sua obra, por não oferecer uma síntese, é continuamente sintetizada por outros — alguns movidos pela nostalgia, outros pelo desencanto, outros ainda pela ânsia de transformar toda expressão cultural em munição política. A multiplicidade, que deveria abrir horizontes, torna-se pretexto para enclausuramento moral. Seus ouvintes mais ruidosos não se perguntam o que ele quis dizer; perguntam o que sua própria visão de mundo precisa ouvir. E a obra, reduzida a superfície refletora, responde com o silêncio inevitável dos mortos.
O que se disputa, no limite, não é Renato Russo, nem Lobão, nem o rock dos anos 1980 — é o próprio direito de narrar o passado. O Brasil, país incapaz de organizar sua memória sem transformá-la em tribunal ou vitrine, trata suas manifestações culturais como se fossem provas documentais de uma identidade nacional que nunca conseguiu formular. Ao contrário de sociedades que elaboram mitologias consistentes, nós inventamos mitos descartáveis, ajustáveis, que podem ser convocados ao sabor das aflições de cada geração. A música torna-se, assim, apenas mais uma esfera em que se projeta a eterna disputa pelo que significa “ser brasileiro”, disputa sempre marcada por exclusões, esquecimentos e fantasias compensatórias.
Mas há algo ainda mais inquietante: o fato de que essa disputa se intensifica justamente quando o presente nos parece ilegível. Em vez de enfrentá-lo, preferimos esculpi-lo retroativamente, como se a restauração imaginária de uma era musical pudesse conter a erosão institucional que atravessamos. Os nostálgicos ferozes dos comentários do YouTube não estão apenas protegendo suas memórias juvenis; estão tentando recuperar um mundo que acreditam ter sido tomado deles. Nessa tentativa, alinham-se com projetos políticos que lhes prometem a devolução de uma ordem jamais experimentada. O passado funciona como mercadoria espiritual: oferece a ilusão de estabilidade num país que nunca a teve.
É por isso que o debate sobre o rock dos anos 1980, aparentemente trivial, é tão revelador. Ele escancara uma fratura mais profunda: a necessidade contínua de transformar cultura em barricada moral. Não se discute música, discute-se civilização. Não se contrapõem estilos, contrapõem-se visões de mundo. E, quando a cultura é submetida a essa lógica binária, nada escapa: nem a alegria boba de uma banda passageira, nem a angústia literária de um compositor complexo, nem o riso ligeiro de um álbum que nunca pediu para carregar peso político algum.
Talvez seja precisamente essa sobrecarga simbólica que produza o estado atual das coisas: um país que transforma artistas em oráculos e canções em armas. A música, porém, não foi feita para suportar tal peso. Ela resiste, mas seu sentido se fragmenta em cada reivindicação, em cada comentário ressentido, em cada nostalgia mal direcionada. A cultura brasileira — vibrante, contraditória, inesgotável — não cabe na moldura estreita de quem deseja congelá-la num suposto apogeu moral.
Não devemos lutar para recuperar o passado, mas abandoná-lo finalmente ao que ele é: ruína, registro, vestígio. Deixar que as canções dos anos 1980 sejam aquilo que sempre foram — arte localizada, produto de um momento específico, testemunho de desejos e limites — é a libertação necessária para que o presente possa respirar. Há força, quase uma violência benigna, em recusar o culto às relíquias e permitir que novas vozes ocupem o espaço que antes era reservado aos mesmos ídolos de sempre.
Porque o que atravessa o Brasil agora não é a nostalgia por um tempo perdido. É o medo de encarar o tempo que chegou. E só quando entendermos que não há passado capaz de nos proteger do presente — nem Renato, nem Lobão, nem qualquer outro — será possível largar a segurança ilusória dos mitos e enfrentar, com a vulnerabilidade que nos resta, o mundo real que insiste em existir.
Esse é o gesto de maturidade: soltar o passado como quem abre a mão e, pela primeira vez em muito tempo, sente o peso do futuro.

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