Tornar-se cético não é um gesto heroico, nem um triunfo do espírito sobre a superstição. É, quase sempre, um acidente. Algo que ocorre quando a engrenagem simbólica que sustentava o mundo deixa de girar sem que outra esteja pronta para substituí-la. O cético não escolhe a dúvida; ele acorda nela, como alguém que percebe, tarde demais, que a casa em que vivia não tinha fundações. O erro mais comum é supor que essa condição produza liberdade. Na verdade, ela produz apenas lucidez suficiente para perceber o grau de servidão em que se viveu — e a impossibilidade de escapar completamente dela.
A crença religiosa, ao contrário do que imaginam seus críticos mais entusiasmados, raramente se baseia na ingenuidade intelectual. Ela se ancora, sobretudo, na necessidade humana de continuidade narrativa. Os deuses oferecem aquilo que a experiência comum se recusa a garantir: sentido retrospectivo e promessa prospectiva. Abandoná-los não elimina essa necessidade; apenas a desloca. Por isso, o mundo moderno está repleto de ex-crentes que continuam esperando salvação — agora sob a forma de progresso, ciência, emancipação ou terapia.
O ateísmo contemporâneo, quando militante, é apenas uma teologia negativa mal resolvida. Mantém intacta a estrutura mental da fé: a crença num fim último da história, a expectativa de redenção coletiva e a convicção de que a verdade, uma vez conhecida, produzirá efeitos morais desejáveis. A diferença é que, no lugar de Deus, instala-se a Humanidade — entidade ainda mais abstrata e certamente mais cruel, pois não pode ser responsabilizada por nada.
A desconfiança genuína não se dirige apenas às crenças herdadas, mas também às crenças adquiridas como antídoto contra elas. O cético que se contenta em negar o sobrenatural costuma fazê-lo para preservar intacta alguma outra ficção reconfortante. A mais persistente delas é a ideia de que os seres humanos aprendem com a experiência histórica. Nada na sucessão de catástrofes políticas, guerras religiosas e entusiasmos ideológicos autoriza essa esperança. O passado não ensina; ele apenas se repete sob novas justificativas morais.
A figura de Jesus, como tantas outras figuras fundadoras, sobrevive menos pelo que disse ou fez do que pelo que foi feito com ela. As tradições não se perpetuam porque são verdadeiras, mas porque são úteis. Elas oferecem esquemas interpretativos que reduzem a complexidade da experiência e tornam o sofrimento suportável. A utilidade, contudo, cobra um preço: exige adesão incondicional e pune a ambiguidade. É por isso que as figuras centrais das religiões, quando observadas de perto, produzem mais cegueira do que iluminação. Não porque escondam algo, mas porque concentram excesso de significado.
O erro recorrente do pensamento religioso — e de suas versões seculares — é confundir intensidade emocional com verdade ontológica. Experiências transformadoras são tratadas como revelações universais. A conversão individual converte-se em prova metafísica. No entanto, estados mentais não são janelas para a estrutura do mundo; são apenas eventos neurológicos interpretados à luz de narrativas disponíveis. Se essas narrativas fossem outras, a experiência seria a mesma, mas o significado atribuído a ela mudaria radicalmente.
É por isso que toda investigação honesta sobre a origem das crenças precisa começar não no ápice simbólico, mas nas margens. Não nos milagres, mas nos documentos. Não na revelação, mas na transmissão. O que sobrevive não é o acontecimento, mas o relato. E todo relato carrega a marca de quem o produziu, das circunstâncias em que foi produzido e das finalidades — conscientes ou não — que ele serviu.
A obsessão moderna pela autenticidade é, nesse sentido, profundamente anacrônica. Esperar dos textos antigos a transparência factual que exigimos de um relatório contemporâneo é desconhecer sua função original. Eles não foram escritos para registrar o que aconteceu, mas para organizar o que devia ser lembrado. A memória coletiva é sempre seletiva, e sua seleção obedece menos à verdade do que à sobrevivência.
Há uma ingenuidade persistente na tentativa de distinguir, de modo definitivo, entre fé e manipulação. As duas caminham juntas desde o início. Toda crença compartilhada exerce poder, e todo poder simbólico tende a se autopreservar. Isso não implica uma conspiração consciente, mas um processo evolutivo: as narrativas que mobilizam adesão emocional profunda são aquelas que permanecem. As outras desaparecem sem deixar vestígios.
Assim, quando se retorna aos textos fundadores não em busca de conforto, mas de compreensão, a decepção é inevitável. Não se encontra ali uma origem pura, mas um emaranhado de vozes, interesses e interpretações concorrentes. O que chamamos de tradição é apenas o resultado contingente de disputas esquecidas. E talvez seja essa constatação — mais do que qualquer dúvida metafísica — que torna o ceticismo irreversível.
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