Sempre que um texto antigo abandona a narração impessoal e introduz um “nós”, não estamos diante de uma confissão espontânea, mas de uma técnica. Não é o sujeito que emerge; é o dispositivo retórico que entra em funcionamento. O pronome coletivo não acrescenta informação relevante, tampouco esclarece os fatos. Ele serve para outra coisa: criar a ilusão de proximidade e, com ela, uma obrigação tácita de confiança. O leitor não é convencido; é cooptado.
O testemunho, tão valorizado pela sensibilidade moderna, nunca foi garantia de verdade. É, no máximo, garantia de presença — e presença, por si só, nada prova. Pessoas estão presentes em todos os acontecimentos decisivos da história humana e quase sempre entendem mal o que presenciam. A convicção íntima de ter visto algo não protege ninguém do autoengano. Pelo contrário, costuma reforçá-lo.
A introdução súbita de uma voz que afirma “estávamos lá” cumpre uma função precisa: bloquear a dúvida antes que ela se formule. O leitor é convidado a aceitar o relato não porque ele seja coerente, mas porque questioná-lo pareceria indelicado. A dúvida passa a ser interpretada como desconfiança pessoal, não como exigência intelectual. Trata-se de um deslocamento sutil, porém eficaz, da crítica para o campo moral.
As religiões históricas não se estruturaram sobre provas, mas sobre relações de lealdade. Não exigem que se acredite em fatos, mas que se confie em narradores. A fé não é assentimento a proposições; é adesão a uma cadeia de vozes. O erro do racionalismo ingênuo foi imaginar que bastaria desmontar os enunciados para dissolver a crença. Mas crenças não sobrevivem porque são verdadeiras; sobrevivem porque organizam vínculos humanos.
A figura do acompanhante discreto — aquele que não protagoniza, mas legitima — é recorrente em toda construção de autoridade simbólica. Quem escreve não precisa dominar; basta enquadrar. Ao permanecer parcialmente invisível, o narrador preserva a aparência de neutralidade enquanto exerce controle decisivo sobre o sentido. A história, como sempre, é menos moldada por quem age do que por quem escolhe o que será lembrado.
A modernidade, que se imagina vacinada contra tais artifícios, apenas substituiu os personagens. Onde antes havia apóstolos, há especialistas. Onde havia testemunhas inspiradas, há sobreviventes, pacientes, usuários, identidades narrativas. O mecanismo é o mesmo: o relato pessoal converte-se em autoridade inquestionável, não porque seja mais verdadeiro, mas porque parece mais vulnerável. Questioná-lo soa cruel. E a crueldade tornou-se o pecado capital de uma cultura sem transcendência.
O apego contemporâneo à experiência vivida como critério último de verdade revela menos maturidade epistemológica do que desespero simbólico. Quando nenhuma visão de mundo consegue se impor de forma estável, o indivíduo recorre à própria biografia como âncora. Mas biografias são materiais instáveis. Elas mudam conforme a memória muda, conforme o vocabulário muda, conforme o clima moral do tempo muda.
Os textos antigos que continuam a nos inquietar não o fazem porque contenham verdades profundas, mas porque exploram com eficiência essa fragilidade humana. Eles oferecem não respostas, mas enquadramentos duráveis. Não explicam o mundo; ensinam como suportá-lo. Essa utilidade prática explica sua longevidade muito melhor do que qualquer inspiração divina.
A investigação histórica que busca recuperar a “intenção original” desses textos parte de uma ilusão semelhante à religiosa. Supõe que, por trás das camadas de interpretação, exista um núcleo estável, acessível, capaz de resolver ambiguidades posteriores. O que se encontra, no entanto, é apenas outra camada. Não há origem pura, apenas versões mais antigas do mesmo problema.
O efeito desmoralizante da leitura crítica não reside na perda da fé, mas na constatação de que nunca houve um ponto de apoio externo à narrativa. A autoridade sempre foi interna ao texto, reforçada pela repetição, pelo hábito e pelo medo da exclusão. O “nós” não indica comunidade real; indica apenas a fronteira entre quem pertence e quem não pertence.
No fim, a pergunta decisiva não é quem esteve lá, mas por que ainda estamos aqui, lendo isso, procurando nesses vestígios um sentido que eles nunca prometeram fornecer. Talvez porque, mesmo cientes do artifício, continuemos dependentes dele. O ceticismo não nos liberta das narrativas; apenas nos impede de acreditar plenamente em qualquer uma delas.
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