A Mente Como Um Arquivo Involuntário: Notas Céticas Sobre a Arte de Recordar


Há quem imagine que a memória seja um cofre ordenado, onde os fatos do passado repousam intactos, à espera de um comando racional. Mas basta um cheiro ordinário — desinfetante barato, fritura de padaria — ou uma música esquecida para que essa fantasia moderna desmorone. A memória é menos um arquivo e mais um organismo caprichoso, que só entrega seus fragmentos quando quer. Somos herdeiros de lembranças que não escolhemos e servos de sensações que nos comandam.

O otimismo pedagógico que nos garante sermos donos de nossas histórias não resiste a esses pequenos golpes sensoriais. Quando o corpo decide abrir uma porta, descobrimos que jamais fomos os arquitetos do que lembramos. Fomos apenas inquilinos passageiros de uma casa que insiste em reter ecos.

Escrever memórias, portanto, não é um exercício de soberania — é uma negociação tensa com forças internas que não respondem a discursos edificantes. A cultura contemporânea, sempre pronta para transformar qualquer gesto íntimo em projeto de autocura, costuma imaginar que revisitar o passado é um processo linear de ressignificação. Mas o passado raramente coopera. Ele não se apresenta de maneira pedagógica: chega com ruídos, manchas e contradições. E, como todo visitante involuntário, chega na pior hora — na madrugada, depois do cansaço, quando desistimos de controlá-lo.

É comum confundir esse retorno abrupto de lembranças com profundidade espiritual. Mas não há nada de elevado nisso: o corpo apenas continua seu trabalho silencioso de conservar marcas, tal como um animal que, mesmo domesticado, ainda reconhece o cheiro do perigo. Por mais elaboradas que sejam as interpretações literárias que construímos, é sempre o corpo que leva vantagem. Ele lembra o frio viscoso do corredor de escola, o vinil gasto de um banco público, a textura moralmente ambígua de pessoas que nos feriram. A mente racional chega depois, tentando organizar o que nunca pediu para receber.

Daí o caráter desgastante dessa prática. Quem resolve redescobrir a infância costuma descobrir também que há um custo fisiológico em desenterrar o que foi guardado com tanto empenho. Cochilos repentinos, exaustão sem causa aparente — sintomas que lembram que não há progresso emocional garantido. O mito moderno do amadurecimento perpétuo tropeça aqui: não é porque revisitamos a dor que ela se dissolve. Às vezes apenas muda de forma, como um animal que aprende truques sem perder os dentes.

Há também o problema moral — e é aqui que o ceticismo se torna mais necessário. A tentação de transformar o livro de memórias num tribunal é irresistível. Mas a crença de que a literatura é um instrumento de justiça é apenas mais uma superstição progressista: a ideia de que a escrita melhora o mundo, ou ao menos equilibra a balança ética do passado. John Stuart Mill talvez acreditasse nisso; a própria memória, não. Ela não se interessa por justiça. Atribui a cada figura um traço grotesco ou terno, sem se preocupar com vereditos.

A alternativa madura — admitir a própria mesquinhez enquanto se descreve a alheia — não é uma terapia moral. É apenas uma forma de não mentir tão descaradamente para si mesmo. A moralidade humana, como a memória, é irregular, e o escritor que a trata como matéria dócil se condena a um autoengano elegante.

Resta a disciplina, que muitos tratam como o último abrigo seguro. Mas até ela, vista de perto, não promete grande coisa. A rotina diária de sentar e escrever, mesmo sem fé no que se está fazendo, é menos uma estrada para o autoconhecimento do que uma forma de aceitar a insignificância das nossas intenções. Não produz iluminação; produz páginas, algumas inúteis, outras surpreendentemente vivas. O resto é acaso, essa força antiga que governa muito mais do que gostamos de admitir.

Talvez seja isso que interessa ao leitor comum que decide anotar a própria vida. Não a ilusão de ordenar o caos, mas a percepção — incômoda, porém libertadora — de que nossas histórias não são grandes epopeias rumo à clareza. São tentativas provisórias de dar um contorno minimamente inteligível ao que o corpo, em sua obstinação muda, insistiu em guardar.

No fim, escrever memórias não nos torna senhores de nós mesmos. Apenas nos ensina a conviver com a desconfiança de que aquilo que chamamos de “eu” sempre foi uma construção frágil, sustentada por ruídos, cheiros e pequenos lampejos que escapam ao controle. A memória não é um espelho — é um animal selvagem que, de vez em quando, aceita ser observado. Mas nunca domado.

Postar um comentário

José Fagner. Theme by STS.