A QUEDA DE SATANÁS E A INSISTÊNCIA HUMANA NO AUTOENGANO



René Girard acreditava ter descoberto a lógica profunda que move as sociedades humanas: o desejo imitativo que gera rivalidade, a rivalidade que busca expiação e a expiação que assume a forma do bode expiatório. Em Eu vi satanás cair do céu como um relâmpago, ele afirma que o cristianismo desmascara esse mecanismo ancestral, expondo-o à luz e, ao fazê-lo, dissolve sua eficácia.

Para Girard, essa revelação tem consequências civilizacionais. Para mim, porém, a ambição de iluminar os alicerces sombrios da espécie humana esbarra sempre no mesmo limite: o homem não é um animal que progride, mas uma criatura que se reinventa para permanecer igual.

Girard é, entre os teóricos contemporâneos, um dos poucos que encara a violência humana sem as fantasias otimistas da modernidade. Ele mostra que a coesão social não nasce do consenso racional, mas do terror compartilhado. As sociedades não se unem porque se entendem, mas porque encontram alguém a quem culpar. Nesse ponto, é difícil não reconhecer o parentesco entre Girard e realistas como Hobbes — embora Girard acredite descobrir algo mais arcaico, mais primitivo que o Leviatã.

Entretanto, Girard avança um passo que Gray consideraria ousado demais: ele supõe que a revelação cristã que expõe o mecanismo do bode expiatório diminui seu poder coercitivo.

A história posterior, contudo, não oferece evidências de que o conhecimento sobre a violência ritual a torne menos frequente. O século XX, que conhecia perfeitamente o funcionamento dos mitos e das massas, tornou-se o palco dos sacrifícios mais meticulosos da história. A queda de Satanás anunciada por Girard dificilmente pode ser interpretada como um triunfo moral da humanidade.
Girard está correto em identificar que os textos bíblicos rompem com a tradição mitológica que culpa a vítima. Isso é extraordinário. A paixão de Cristo revela a inocência da vítima e a injustiça da multidão — algo sem paralelo nas religiagens arcaicas.

Mas a partir daí Girard imagina que essa revelação põe o mundo num caminho ético: ao expor o mecanismo sacrificial, o cristianismo gradualmente impede seu funcionamento.

Do ponto de vista de John Gray, o que o cristianismo efetivamente faz é remover a ilusão reconfortante de que a violência coletiva se justifica. Ele dissolve a estabilidade pré-moderna sem fornecer nenhum substituto. O resultado não é um mundo mais humano, mas mais caótico: uma espécie que perdeu o véu mitológico que a protegia, mas não adquiriu a serenidade para viver sem ele.

A revelação não liberta a humanidade da violência. Simplesmente a torna consciente — e a consciência, longe de ser cura, é apenas mais um fardo.

Girard percebe que, sem a válvula sacrificial, as sociedades modernas vivem em tensão permanente. A justiça substitui o rito; os tribunais substituem o altar; mas a necessidade psicológica de encontrar culpados não desaparece.

O que para Girard é um alerta escatológico — a intensificação da violência num mundo sem mecanismos de contenção — para Gray seria um diagnóstico antropológico: os humanos continuarão a perseguir bodes expiatórios, apenas em escala mais industrial, porque continuamos sendo o que sempre fomos.

A modernidade, nesse sentido, não é a era em que Satanás cai: é a era em que ele se dispersa.

Cada indivíduo se torna simultaneamente vítima e cúmplice; cada grupo se declara perseguido enquanto persegue outro. A moralidade secular, supostamente emancipada do sagrado, recria mini-teologias de inocência e culpa. No lugar do sacrifício ritual, surgem linchamentos morais, purgas ideológicas e políticas de pureza — tudo em nome do humanismo.

Girard interpreta isso como a intensificação de um processo desencadeado pelo cristianismo. Gray, menos otimista, diria que isso apenas mostra que, mesmo quando desnudamos nossos mitos, continuamos a viver dentro de mitologias improvisadas.
Há um ponto no qual Girard e Gray se encontram: ambos rejeitam a fantasia do progresso humano.

Mas, enquanto Girard vê esperança na revelação cristã, Gray vê apenas mais uma narrativa sobre a superação da condição humana — e toda narrativa desse tipo é uma repetição do mesmo erro.

O mecanismo do bode expiatório pode ter sido exposto, mas nada indica que podemos abandoná-lo. Pelo contrário: quanto mais conscientes nos tornamos de nossas estruturas violentas, mais engenhosas se tornam nossas justificações. O mito pode ter caído; o desejo de perseguição, não.

O que Eu vi Satanás cair do céu como um relâmpago descreve é, na leitura de Gray, uma queda sem destino: a queda de uma ilusão civilizadora que não será substituída por nada equivalente. A humanidade vive agora exposta à sua própria natureza — e talvez seja isso que Girard chama de apocalipse.

O valor do pensamento de Girard está em revelar que a violência humana não é acidente, mas fundamento. Seu erro — se quisermos falar em erro — é acreditar que podemos escapar ao que somos.

A queda de Satanás pode ser interpretada, ao modo girardiano, como o início de uma nova consciência moral. Para John Gray, ela seria antes a constatação de que a humanidade perdeu um de seus últimos artifícios para conter a si mesma.

O que permanece é a espécie humana, inquieta como sempre, porém agora privada do consolo dos mitos que lhe davam coesão.
Se existe salvação, ela não está na história. E, se existe queda, é a queda interminável do próprio homem — sempre certo de que sabe demais para repetir seus velhos erros, e sempre empenhado em repeti-los com renovado fervor.

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