Imagem de chiến nguyễn bá por Pixabay
A história da música popular poderia ser contada como uma sucessão de rupturas tecnológicas: da prensa de vinil à fita cassete, do CD ao MP3, do Napster ao Spotify. Cada inovação prometia libertar algo — o ouvinte, o artista, o mercado — mas invariavelmente aprisionava outra coisa. A cada salto, algo se ganhava em conveniência e se perdia em densidade, como se a evolução cultural fosse um jogo de soma zero. Mesmo assim, nada preparou a indústria — e talvez a cultura — para a irrupção recente da música gerada por inteligência artificial.
Nos últimos meses, uma história ganhou as manchetes especializadas: a plataforma Suno, criada em 2022 por um grupo de engenheiros fascinados por síntese algorítmica, estaria permitindo que usuários criassem, a cada quinze dias, o equivalente ao catálogo inteiro do Spotify.* A comparação é quase alegórica demais para ser levada ao pé da letra. Mas como toda boa metáfora tecnológica, ela não importa pelo rigor, mas pela atmosfera que revela: estamos diante de um dilúvio.
Para o leigo, a notícia parece apenas mais uma façanha da inteligência artificial — mais uma entre tantas que se acumulam como poeira cósmica nas redes sociais. Para o artista, ela é devastadora: se qualquer pessoa pode gerar uma música minimamente convincente em minutos, o que resta do ofício? E para as plataformas — essas corporações erguidas sobre bibliotecas infinitas — o problema é imediato. Como separar o trigo do spam quando o spam agora pode rimar, modular e fazer fade-out?
A Suno, nos seus comunicados públicos, celebra a “democratização da criação musical”. Os defensores falam em “acesso”, “inovação” e “empoderamento”, como se a produção artística fosse antes uma casta sacerdotal guardando segredos de Estado. Mas o que a tecnologia promete abrir, muitas vezes termina por diluir. Nunca tivemos tanta música. Tampouco tivemos tão pouco silêncio. O excesso se impõe como forma de empobrecimento.
O Spotify, que por duas décadas monopolizou o imaginário do futuro da música, se vê — ironia das ironias — antiquado. Sua ambição original era conter o mundo inteiro de sons em um único app. Agora enfrenta um adversário que não apenas contém o mundo, mas o produz — incessantemente, por encomenda, numa escala que torna ridículas as noções clássicas de catálogo, curadoria e memória.
Pela primeira vez, uma plataforma não disputa a música existente, mas sim a música possível. E isso ameaça os alicerces simbólicos da própria ideia de arte. O que significa um “catálogo” quando sua extensão se renova infinitamente? Como funciona um mercado onde a abundância, e não a escassez, é o maior problema? E como se remunera alguém num sistema em que o alguém já não é mais humano?
É nesse ponto que começa o conflito — mais tecnológico do que estético, mais econômico do que filosófico, mas inevitavelmente tudo isso ao mesmo tempo. A música, que era ao mesmo tempo mercadoria e expressão, torna-se agora um subproduto algorítmico. E, diante desse cenário, até o silêncio parece mais precioso do que nunca.
A autoria sempre foi uma ficção útil. Não no sentido de ser falsa, mas no sentido de funcionar como uma peça de engenharia cultural: ela organiza responsabilidades, atribui mérito, cria narrativas. Quem compôs? Quem tocou? Quem influenciou quem? Tais perguntas moldam a história da música — e a história, como sabemos, é o principal instrumento político da cultura.
Com a chegada massiva das IAs de geração musical, essa ficção enfrenta sua mais profunda crise desde o advento da gravação fonográfica. A Suno, o Udio e dezenas de plataformas emergentes produzem faixas em segundos, com resultados que os evangelistas da tecnologia tratam como equivalentes — ou superiores — aos trabalhos de músicos humanos. A música, nesse novo regime, deixa de ser tradução de uma experiência vivida e passa a ser uma síntese estatística de milhões de experiências alheias. Uma colagem invisível de tudo que já foi ouvido.
Para muitos entusiastas, isso não é um problema; é a democratização final. Se a criatividade é recombinação, por que impedir que máquinas combinem o que quiserem? A resposta é simples: porque, ao contrário das máquinas, seres humanos precisam comer.
Um artista independente — aquele que grava em casa, toca em bares, vende camisetas no Spotify for Artists — já vivia no limite da precariedade. O streaming, ao mesmo tempo em que lhe deu vitrine global, destruiu seu poder de negociação. Recebia centavos, às vezes milésimos de centavos, por reprodução. Agora, com a enxurrada de músicas artificiais, o valor de cada stream real tende a cair ainda mais. Plataformas já relatam crescimento descontrolado de uploads de “faixas de baixa qualidade”, “interferência algorítmica” e até “catálogos inteiros gerados para burlar sistemas de monetização”.
O que era uma competição entre artistas virou uma competição entre artistas e máquinas. E, na economia da abundância infinita, o artista perde sempre.
Mas o conflito não é apenas econômico. É estético. É ontológico. A música algorítmica esvazia a noção de autoria — não porque a destrói, mas porque a torna irrelevante. Quando há dez versões indistinguíveis de uma mesma “vibe” — todas criadas por prompts como “faça um pagode triste, com letra sobre abandono, estilo Belo, mas sem plagiar” — a singularidade se dissolve como sal na água.
O público, por sua vez, tende a não perceber. Não por ignorância, mas por cansaço. A lógica das plataformas transformou a música em trilha sonora para atividades periféricas: malhar, trabalhar, dormir, chorar discretamente. A música deixou de ser centro e virou utilidade. E utilidades não requerem autoria. Requerem eficiência.
Esse é o ponto onde a crise do artista encontra a crise do ouvinte: ambos se tornam intercambiáveis, ambos perdem profundidade. O artista vira usuário de ferramentas. O ouvinte vira alvo de perfis comportamentais. A distância entre os dois, que outrora definia a relação estética, colapsa em ruído.
Se o progresso tecnológico tivesse algum compromisso com o humano, esse seria o momento de desaceleração e reflexão. Mas não vivemos numa época de compromissos; vivemos numa época de métricas. E as métricas — volume, engajamento, retenção — favorecem o algoritmo.
Assim, a autoria segue sitiada. Os artistas resistem como podem. As plataformas tentam, sem convicção, filtrar o dilúvio. E, no meio desse impasse, uma pergunta crucial permanece sem resposta: será que ainda precisamos saber quem fez uma música para que ela seja música?
Quando uma tecnologia emerge com a força de uma inundação, tende-se a imaginar dois possíveis desfechos: ou ela destrói tudo no caminho, ou molda o terreno até encontrar um curso previsível. A história humana raramente confirma um desses extremos. O que acontece, quase sempre, é a convivência conflituosa entre ruínas e adaptações. A música gerada por inteligência artificial não será diferente.
A seguir, três cenários futuros — não excludentes, não definitivos, mas igualmente plausíveis — que ajudam a imaginar o que pode vir após a tempestade.
1. O Futuro do Descontrole — A Era do Ruído Infinito
Nesse cenário, o mais provável em termos de inércia tecnológica, as plataformas falham em criar mecanismos eficazes para distinguir música humana de música gerada por IA. Os sistemas de identificação, inundados por uploads massivos, tornam-se inoperantes. O catálogo do Spotify — já estimado em mais de 100 milhões de faixas — dobra, triplica, quadruplica. A proporção entre “música humana” e “música sintética” torna-se irrelevante: a maior parte do catálogo agora é composta por faixas criadas automaticamente, seja por curiosidade de usuários, seja por sistemas terceirizados treinados para inflar números de monetização.
Os artistas independentes desaparecem das recomendações. Não porque suas músicas sejam ruins, mas porque a lógica algorítmica privilegia abundância: múltiplas versões de algo “quase igual” têm mais chance de encaixar em playlists genéricas do que um artista raro e singular. A descoberta musical — o coração da cultura pop nas últimas décadas — se transforma em uma tarefa arqueológica. Ser artista deixa de ser um ofício e vira uma excentricidade, quase um ritual anacrônico, como pintar com pigmentos naturais ou escrever cartas à mão.
Nesse futuro, o ouvinte resigna-se ao ruído. Playlists deixam de ser curadas e passam a ser automatizadas. Cada atividade — estudar, correr, cozinhar, sofrer — possui dezenas de milhares de trilhas “otimizadas”, indistinguíveis entre si. A música deixa de ser arte e passa a ser ambientação.
Um tipo de muzak global, infinito, sempre disponível, sempre morno.
2. O Futuro da Moderação — A Convergência Forçada
Este cenário parte da premissa de que a crise é grande demais para que as plataformas ignorem. Pressionadas por artistas, selos e governos, empresas como Spotify, Apple Music e YouTube Music implementam políticas agressivas: identificação obrigatória de IA, limites de upload, verificação de autoria, remuneração diferenciada para obras humanas, filtros de spam, auditorias, e até “zonas de isolamento” para músicas sintéticas.
A engenharia não resolve tudo — nunca resolve — mas cria zonas respiráveis. A música gerada por IA continua existindo, mas é segregada em playlists temáticas, bibliotecas próprias, selos identificáveis. Algo como “conteúdo adulto”, mas para algoritmos.
Artistas continuam reclamando, ouvintes continuam confusos, e as plataformas continuam ganhando dinheiro — mas a crise estabiliza. Um equilíbrio imperfeito se estabelece: músicas humanas convivem com músicas robóticas, cada qual com seu ecossistema. Uma espécie de apartheid musical, mas funcional.
Nesse futuro, a autoria não é restaurada integralmente, mas retomada como valor cultural. Ter sido “feito por uma pessoa” torna-se um selo de distinção, como vinil hoje é para colecionadores: uma prova de autenticidade num mundo saturado de sintéticos.
3. O Futuro da Radicalização — A Renascença Analógica
Uma minoria de artistas, cansada da competição desigual com máquinas, abandona as plataformas de streaming. Não por purismo, mas por desespero racional. Criam microcomunidades: bandas que só se apresentam ao vivo, selos que só lançam CDs, músicos que fazem turnês em circuitos alternativos. A música retorna ao corpo, ao ensaio, ao suor. Ou se torna exclusiva, vendida por assinatura direta, como se cada artista fosse uma pequena rádio pirata no subterrâneo digital.
Curiosamente, esse cenário não surge contra a tecnologia, mas graças a ela. Quanto mais saturado o universo das IAs, mais raro e valioso se torna o gesto humano. A imperfeição — antes vista como falha — vira marca de autenticidade. Um vibrato torto, uma respiração captada no microfone, o timbre irregular de uma guitarra vintage: tudo isso será, para um nicho de ouvintes, mais poderoso do que milhares de faixas perfeitas e vazias.
Nesse futuro, a música humana volta a ser uma arte de resistência. Pequena, mas viva. Silenciosa, mas pulsante.
Esses três cenários não se anulam: podem coexistir, sobrepor-se, agravar-se. O mundo real raramente escolhe um único caminho. E talvez o resultado final não esteja nas mãos das plataformas, nem dos artistas, mas dos ouvintes — esse grupo amorfo, volátil, que passou a ouvir mais música do que nunca, mas talvez nunca tenha escutado tão pouco.
Quando uma tecnologia se impõe com a força de um destino, costuma-se dizer que resistir é inútil. A história da música, no entanto, mostra que a resistência nunca desaparece — ela apenas muda de lugar. O rádio não matou o disco; o CD não matou o vinil; o streaming não matou os shows. Cada nova camada adiciona, mas não substitui. O problema da música gerada por IA, contudo, não é ser “mais uma camada”: é ser um solvente universal.
O que está em jogo agora não é o meio, mas o sentido.
Nas últimas décadas, acostumamo-nos a acreditar que a tecnologia era uma força civilizatória — às vezes destrutiva, às vezes ambígua, mas sempre carregada de futuro. Quando falávamos de “avanços”, queríamos dizer alguma forma de expansão humana: mais acesso, mais comunicação, mais possibilidades. Essa crença, quase religiosa, sustentou o imaginário digital desde a virada do século.
Mas a música algorítmica coloca a dúvida: e se o progresso não tiver nada a ver com o humano? E se o futuro continuar avançando mesmo que não sejamos mais necessários?
A Suno — e suas congêneres — não são, por si só, o problema. Elas são sintoma. Sintoma de um mundo que trocou criação por produção, experiência por eficiência, sentido por volume. A música, nesse ambiente, não desaparece: ela prolifera. Mas prolifera como organismos oportunistas proliferam quando um ecossistema colapsa. É abundante, mas não é diversa. É infinita, mas não é profunda. É sonora, mas não é musical.
O ouvinte comum talvez não se dê conta. Nem precisa. Seu papel, nesse modelo, é apenas consumir — ou melhor, permitir que algoritmos consumam por ele. Ele clica, arrasta, pula faixas, segue playlists, mas raramente escuta. A escuta — aquela antiga prática humana de intimidade com o som — se torna um luxo raríssimo, quase um ato estético de resistência.
O artista, por sua vez, enfrenta um dilema que nenhuma geração anterior experimentou: competir com uma entidade que não dorme, não erra, não cansa e não tem vaidade. A IA não quer ser famosa. Não quer ser aplaudida. Não quer esgotar ingressos. Ela quer apenas gerar — incessantemente, exponencialmente, idiotamente. É a torção final do capitalismo cultural: conteúdo sem intenção.
E, no entanto, é possível que a música humana sobreviva. Não porque seja superior — essa é uma crença romântica demais — mas porque tem limites. E limites, na cultura, são fontes de beleza. Um cantor desafinado mas sincero pode emocionar mais do que cinquenta mil baladas perfeitas. Uma gravação mal mixada pode carregar mais verdade do que qualquer simulação cristalina de um algoritmo. A humanidade não vence por excelência — vence por falha.
Num mundo saturado de tudo, o raro volta a ser o imperfeito.
Se esse renascimento virá de pequenos clubes, de comunidades fechadas, de plataformas alternativas ou de gestos isolados de teimosia artística, ninguém sabe. Mas é certo que, após a tormenta do ruído infinito, algo permanecerá. Talvez um fio de autenticidade, talvez uma recusa silenciosa, talvez um culto subterrâneo à presença real — aquele instante em que alguém toca uma nota que nunca existiu e nunca existirá de novo.
O futuro da música não será épico. Não será grandioso. Será fragmentado, disputado, remendado. E, como tudo que pertence ao humano, será imperfeito. Mas, justamente por isso, poderá ser belo.
Assim termina o dilúvio. Não com silêncio absoluto, mas com uma nota pequena, falha, tocada por mãos humanas. Uma nota que nenhuma máquina, por mais eficiente que seja, conseguirá entender totalmente.
E talvez seja essa a nossa última vitória.
Nos últimos meses, uma história ganhou as manchetes especializadas: a plataforma Suno, criada em 2022 por um grupo de engenheiros fascinados por síntese algorítmica, estaria permitindo que usuários criassem, a cada quinze dias, o equivalente ao catálogo inteiro do Spotify.* A comparação é quase alegórica demais para ser levada ao pé da letra. Mas como toda boa metáfora tecnológica, ela não importa pelo rigor, mas pela atmosfera que revela: estamos diante de um dilúvio.
Para o leigo, a notícia parece apenas mais uma façanha da inteligência artificial — mais uma entre tantas que se acumulam como poeira cósmica nas redes sociais. Para o artista, ela é devastadora: se qualquer pessoa pode gerar uma música minimamente convincente em minutos, o que resta do ofício? E para as plataformas — essas corporações erguidas sobre bibliotecas infinitas — o problema é imediato. Como separar o trigo do spam quando o spam agora pode rimar, modular e fazer fade-out?
A Suno, nos seus comunicados públicos, celebra a “democratização da criação musical”. Os defensores falam em “acesso”, “inovação” e “empoderamento”, como se a produção artística fosse antes uma casta sacerdotal guardando segredos de Estado. Mas o que a tecnologia promete abrir, muitas vezes termina por diluir. Nunca tivemos tanta música. Tampouco tivemos tão pouco silêncio. O excesso se impõe como forma de empobrecimento.
O Spotify, que por duas décadas monopolizou o imaginário do futuro da música, se vê — ironia das ironias — antiquado. Sua ambição original era conter o mundo inteiro de sons em um único app. Agora enfrenta um adversário que não apenas contém o mundo, mas o produz — incessantemente, por encomenda, numa escala que torna ridículas as noções clássicas de catálogo, curadoria e memória.
Pela primeira vez, uma plataforma não disputa a música existente, mas sim a música possível. E isso ameaça os alicerces simbólicos da própria ideia de arte. O que significa um “catálogo” quando sua extensão se renova infinitamente? Como funciona um mercado onde a abundância, e não a escassez, é o maior problema? E como se remunera alguém num sistema em que o alguém já não é mais humano?
É nesse ponto que começa o conflito — mais tecnológico do que estético, mais econômico do que filosófico, mas inevitavelmente tudo isso ao mesmo tempo. A música, que era ao mesmo tempo mercadoria e expressão, torna-se agora um subproduto algorítmico. E, diante desse cenário, até o silêncio parece mais precioso do que nunca.
Com a chegada massiva das IAs de geração musical, essa ficção enfrenta sua mais profunda crise desde o advento da gravação fonográfica. A Suno, o Udio e dezenas de plataformas emergentes produzem faixas em segundos, com resultados que os evangelistas da tecnologia tratam como equivalentes — ou superiores — aos trabalhos de músicos humanos. A música, nesse novo regime, deixa de ser tradução de uma experiência vivida e passa a ser uma síntese estatística de milhões de experiências alheias. Uma colagem invisível de tudo que já foi ouvido.
Para muitos entusiastas, isso não é um problema; é a democratização final. Se a criatividade é recombinação, por que impedir que máquinas combinem o que quiserem? A resposta é simples: porque, ao contrário das máquinas, seres humanos precisam comer.
Um artista independente — aquele que grava em casa, toca em bares, vende camisetas no Spotify for Artists — já vivia no limite da precariedade. O streaming, ao mesmo tempo em que lhe deu vitrine global, destruiu seu poder de negociação. Recebia centavos, às vezes milésimos de centavos, por reprodução. Agora, com a enxurrada de músicas artificiais, o valor de cada stream real tende a cair ainda mais. Plataformas já relatam crescimento descontrolado de uploads de “faixas de baixa qualidade”, “interferência algorítmica” e até “catálogos inteiros gerados para burlar sistemas de monetização”.
O que era uma competição entre artistas virou uma competição entre artistas e máquinas. E, na economia da abundância infinita, o artista perde sempre.
Mas o conflito não é apenas econômico. É estético. É ontológico. A música algorítmica esvazia a noção de autoria — não porque a destrói, mas porque a torna irrelevante. Quando há dez versões indistinguíveis de uma mesma “vibe” — todas criadas por prompts como “faça um pagode triste, com letra sobre abandono, estilo Belo, mas sem plagiar” — a singularidade se dissolve como sal na água.
O público, por sua vez, tende a não perceber. Não por ignorância, mas por cansaço. A lógica das plataformas transformou a música em trilha sonora para atividades periféricas: malhar, trabalhar, dormir, chorar discretamente. A música deixou de ser centro e virou utilidade. E utilidades não requerem autoria. Requerem eficiência.
Esse é o ponto onde a crise do artista encontra a crise do ouvinte: ambos se tornam intercambiáveis, ambos perdem profundidade. O artista vira usuário de ferramentas. O ouvinte vira alvo de perfis comportamentais. A distância entre os dois, que outrora definia a relação estética, colapsa em ruído.
Se o progresso tecnológico tivesse algum compromisso com o humano, esse seria o momento de desaceleração e reflexão. Mas não vivemos numa época de compromissos; vivemos numa época de métricas. E as métricas — volume, engajamento, retenção — favorecem o algoritmo.
Assim, a autoria segue sitiada. Os artistas resistem como podem. As plataformas tentam, sem convicção, filtrar o dilúvio. E, no meio desse impasse, uma pergunta crucial permanece sem resposta: será que ainda precisamos saber quem fez uma música para que ela seja música?
Quando uma tecnologia emerge com a força de uma inundação, tende-se a imaginar dois possíveis desfechos: ou ela destrói tudo no caminho, ou molda o terreno até encontrar um curso previsível. A história humana raramente confirma um desses extremos. O que acontece, quase sempre, é a convivência conflituosa entre ruínas e adaptações. A música gerada por inteligência artificial não será diferente.
A seguir, três cenários futuros — não excludentes, não definitivos, mas igualmente plausíveis — que ajudam a imaginar o que pode vir após a tempestade.
1. O Futuro do Descontrole — A Era do Ruído Infinito
Nesse cenário, o mais provável em termos de inércia tecnológica, as plataformas falham em criar mecanismos eficazes para distinguir música humana de música gerada por IA. Os sistemas de identificação, inundados por uploads massivos, tornam-se inoperantes. O catálogo do Spotify — já estimado em mais de 100 milhões de faixas — dobra, triplica, quadruplica. A proporção entre “música humana” e “música sintética” torna-se irrelevante: a maior parte do catálogo agora é composta por faixas criadas automaticamente, seja por curiosidade de usuários, seja por sistemas terceirizados treinados para inflar números de monetização.
Os artistas independentes desaparecem das recomendações. Não porque suas músicas sejam ruins, mas porque a lógica algorítmica privilegia abundância: múltiplas versões de algo “quase igual” têm mais chance de encaixar em playlists genéricas do que um artista raro e singular. A descoberta musical — o coração da cultura pop nas últimas décadas — se transforma em uma tarefa arqueológica. Ser artista deixa de ser um ofício e vira uma excentricidade, quase um ritual anacrônico, como pintar com pigmentos naturais ou escrever cartas à mão.
Nesse futuro, o ouvinte resigna-se ao ruído. Playlists deixam de ser curadas e passam a ser automatizadas. Cada atividade — estudar, correr, cozinhar, sofrer — possui dezenas de milhares de trilhas “otimizadas”, indistinguíveis entre si. A música deixa de ser arte e passa a ser ambientação.
Um tipo de muzak global, infinito, sempre disponível, sempre morno.
2. O Futuro da Moderação — A Convergência Forçada
Este cenário parte da premissa de que a crise é grande demais para que as plataformas ignorem. Pressionadas por artistas, selos e governos, empresas como Spotify, Apple Music e YouTube Music implementam políticas agressivas: identificação obrigatória de IA, limites de upload, verificação de autoria, remuneração diferenciada para obras humanas, filtros de spam, auditorias, e até “zonas de isolamento” para músicas sintéticas.
A engenharia não resolve tudo — nunca resolve — mas cria zonas respiráveis. A música gerada por IA continua existindo, mas é segregada em playlists temáticas, bibliotecas próprias, selos identificáveis. Algo como “conteúdo adulto”, mas para algoritmos.
Artistas continuam reclamando, ouvintes continuam confusos, e as plataformas continuam ganhando dinheiro — mas a crise estabiliza. Um equilíbrio imperfeito se estabelece: músicas humanas convivem com músicas robóticas, cada qual com seu ecossistema. Uma espécie de apartheid musical, mas funcional.
Nesse futuro, a autoria não é restaurada integralmente, mas retomada como valor cultural. Ter sido “feito por uma pessoa” torna-se um selo de distinção, como vinil hoje é para colecionadores: uma prova de autenticidade num mundo saturado de sintéticos.
3. O Futuro da Radicalização — A Renascença Analógica
Uma minoria de artistas, cansada da competição desigual com máquinas, abandona as plataformas de streaming. Não por purismo, mas por desespero racional. Criam microcomunidades: bandas que só se apresentam ao vivo, selos que só lançam CDs, músicos que fazem turnês em circuitos alternativos. A música retorna ao corpo, ao ensaio, ao suor. Ou se torna exclusiva, vendida por assinatura direta, como se cada artista fosse uma pequena rádio pirata no subterrâneo digital.
Curiosamente, esse cenário não surge contra a tecnologia, mas graças a ela. Quanto mais saturado o universo das IAs, mais raro e valioso se torna o gesto humano. A imperfeição — antes vista como falha — vira marca de autenticidade. Um vibrato torto, uma respiração captada no microfone, o timbre irregular de uma guitarra vintage: tudo isso será, para um nicho de ouvintes, mais poderoso do que milhares de faixas perfeitas e vazias.
Nesse futuro, a música humana volta a ser uma arte de resistência. Pequena, mas viva. Silenciosa, mas pulsante.
Esses três cenários não se anulam: podem coexistir, sobrepor-se, agravar-se. O mundo real raramente escolhe um único caminho. E talvez o resultado final não esteja nas mãos das plataformas, nem dos artistas, mas dos ouvintes — esse grupo amorfo, volátil, que passou a ouvir mais música do que nunca, mas talvez nunca tenha escutado tão pouco.
Quando uma tecnologia se impõe com a força de um destino, costuma-se dizer que resistir é inútil. A história da música, no entanto, mostra que a resistência nunca desaparece — ela apenas muda de lugar. O rádio não matou o disco; o CD não matou o vinil; o streaming não matou os shows. Cada nova camada adiciona, mas não substitui. O problema da música gerada por IA, contudo, não é ser “mais uma camada”: é ser um solvente universal.
O que está em jogo agora não é o meio, mas o sentido.
Nas últimas décadas, acostumamo-nos a acreditar que a tecnologia era uma força civilizatória — às vezes destrutiva, às vezes ambígua, mas sempre carregada de futuro. Quando falávamos de “avanços”, queríamos dizer alguma forma de expansão humana: mais acesso, mais comunicação, mais possibilidades. Essa crença, quase religiosa, sustentou o imaginário digital desde a virada do século.
Mas a música algorítmica coloca a dúvida: e se o progresso não tiver nada a ver com o humano? E se o futuro continuar avançando mesmo que não sejamos mais necessários?
A Suno — e suas congêneres — não são, por si só, o problema. Elas são sintoma. Sintoma de um mundo que trocou criação por produção, experiência por eficiência, sentido por volume. A música, nesse ambiente, não desaparece: ela prolifera. Mas prolifera como organismos oportunistas proliferam quando um ecossistema colapsa. É abundante, mas não é diversa. É infinita, mas não é profunda. É sonora, mas não é musical.
O ouvinte comum talvez não se dê conta. Nem precisa. Seu papel, nesse modelo, é apenas consumir — ou melhor, permitir que algoritmos consumam por ele. Ele clica, arrasta, pula faixas, segue playlists, mas raramente escuta. A escuta — aquela antiga prática humana de intimidade com o som — se torna um luxo raríssimo, quase um ato estético de resistência.
O artista, por sua vez, enfrenta um dilema que nenhuma geração anterior experimentou: competir com uma entidade que não dorme, não erra, não cansa e não tem vaidade. A IA não quer ser famosa. Não quer ser aplaudida. Não quer esgotar ingressos. Ela quer apenas gerar — incessantemente, exponencialmente, idiotamente. É a torção final do capitalismo cultural: conteúdo sem intenção.
E, no entanto, é possível que a música humana sobreviva. Não porque seja superior — essa é uma crença romântica demais — mas porque tem limites. E limites, na cultura, são fontes de beleza. Um cantor desafinado mas sincero pode emocionar mais do que cinquenta mil baladas perfeitas. Uma gravação mal mixada pode carregar mais verdade do que qualquer simulação cristalina de um algoritmo. A humanidade não vence por excelência — vence por falha.
Num mundo saturado de tudo, o raro volta a ser o imperfeito.
Se esse renascimento virá de pequenos clubes, de comunidades fechadas, de plataformas alternativas ou de gestos isolados de teimosia artística, ninguém sabe. Mas é certo que, após a tormenta do ruído infinito, algo permanecerá. Talvez um fio de autenticidade, talvez uma recusa silenciosa, talvez um culto subterrâneo à presença real — aquele instante em que alguém toca uma nota que nunca existiu e nunca existirá de novo.
O futuro da música não será épico. Não será grandioso. Será fragmentado, disputado, remendado. E, como tudo que pertence ao humano, será imperfeito. Mas, justamente por isso, poderá ser belo.
Assim termina o dilúvio. Não com silêncio absoluto, mas com uma nota pequena, falha, tocada por mãos humanas. Uma nota que nenhuma máquina, por mais eficiente que seja, conseguirá entender totalmente.
E talvez seja essa a nossa última vitória.
*Agradecimentos a Lázaro por ter me enviado o link da matéria que inspirou esse texto.

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