Toda religião que perdura o faz porque responde a uma necessidade que não desaparece quando seus deuses se tornam inverossímeis. O erro recorrente dos críticos modernos é tratar a fé como um erro cognitivo, quando ela é, antes de tudo, uma estratégia adaptativa. Não nasce da ignorância, mas da exposição prolongada à instabilidade. Onde a vida é frágil, o sentido precisa ser robusto. E quanto mais arbitrário o mundo, mais rígidas tendem a ser as narrativas que o explicam.
A atração exercida pelas religiões antigas sobre sociedades já saturadas de mitos não se explica por seu exotismo, mas por sua austeridade. Elas prometiam menos prazer e mais disciplina. Menos consolo imediato e mais coerência a longo prazo. Num mundo em que os deuses haviam se tornado entretenimento ritual, surgia um tipo de divindade que exigia algo incômodo: constância. Essa exigência foi confundida, retrospectivamente, com profundidade moral.
A ideia de um deus que se interessa obsessivamente pelo comportamento humano não é uma elevação espiritual; é uma intensificação do controle. A vigilância divina antecipa, em forma mitológica, aquilo que os Estados modernos realizariam com meios burocráticos. Nada escapa ao olhar que tudo vê, nada é moralmente neutro, nada é apenas contingente. A vida inteira converte-se em matéria de julgamento.
Esse tipo de divindade não compete com outras porque seja mais verdadeira, mas porque é mais invasiva. Enquanto os deuses antigos exigiam rituais pontuais, o deus único exige o sujeito inteiro. Pensamentos, desejos, hesitações — tudo passa a ser relevante. A interioridade torna-se campo de batalha. Não surpreende que essa forma religiosa tenha sobrevivido à queda de impérios. Ela coloniza aquilo que os impérios não alcançam diretamente.
O interesse moderno por essas tradições costuma romantizar sua suposta superioridade ética. Mas o que se interpreta como elevação moral é, em grande parte, uma pedagogia do sofrimento. O valor não está na felicidade, mas na resistência. Não na harmonia com o mundo, mas na recusa dele. A vida boa não é a vida bem vivida, mas a vida corretamente suportada.
Quando essas narrativas são reinterpretadas filosoficamente, como ocorreu repetidas vezes ao longo da história, o que se faz não é purificá-las, mas torná-las socialmente reutilizáveis. O mito bruto, tomado ao pé da letra, torna-se inconveniente. Ele precisa ser traduzido em alegoria, psicologia ou metafísica. Não porque seja falso, mas porque se tornou impraticável. A alegoria é o modo civilizado de preservar aquilo que já não pode ser acreditado.
O problema é que, ao espiritualizar o mito, preserva-se sua estrutura normativa. A linguagem muda, mas a exigência permanece. O conflito entre o homem e uma instância superior reaparece como conflito entre razão e desejo, consciência e impulso, autenticidade e alienação. O vocabulário é novo; a tensão é a mesma. O indivíduo continua sendo convidado a travar uma guerra contra si mesmo em nome de um ideal abstrato.
A filosofia moral moderna herdou essa guerra interna e a proclamou universal. A ideia de que existe uma forma correta de vida, acessível a todos, independentemente das circunstâncias, é uma secularização direta do monoteísmo. Apenas substitui a obediência a Deus pela fidelidade a princípios. Mas princípios, como deuses, exigem sacrifícios — e raramente perguntam quem os pagará.
A promessa implícita dessas visões é sempre a mesma: se o indivíduo se alinhar corretamente com a ordem do mundo — seja ela divina, racional ou histórica —, o sofrimento encontrará justificativa. O que nunca se questiona é por que o sofrimento precisaria de justificativa. Talvez ele seja apenas um dado, não um problema a ser resolvido por narrativas redentoras.
O ceticismo radical começa quando se abandona a expectativa de reconciliação. Não entre homem e deus, nem entre sujeito e mundo, nem entre desejo e razão. O mundo não está em desordem; ele simplesmente não foi feito para acomodar nossas expectativas morais. A tentativa incessante de forçar essa acomodação produziu mais violência do que resignação.
Nesse sentido, as religiões não fracassaram. Elas cumpriram sua função com eficiência admirável. Produziram comunidades coesas, justificaram sofrimentos extremos e ofereceram um vocabulário para suportar o intolerável. O equívoco está em esperar delas — ou de seus sucedâneos seculares — algo que nunca prometeram: libertação.
O máximo que essas narrativas oferecem é anestesia simbólica. Elas não eliminam o caos; apenas o tornam narrável. E talvez isso seja tudo o que a maioria dos seres humanos jamais quis. Não a verdade, não a liberdade, mas uma história suficientemente convincente para atravessar a vida sem olhar diretamente para sua indiferença.
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