Em épocas de mudança tecnológica, a ilusão mais persistente é a de que sabemos para onde estamos indo. No entanto, se a história das últimas gerações nos ensinou algo, é que todas as visões do futuro – especialmente aquelas que anunciam emancipação – acabam por revelar-se, no máximo, fases transitórias de um processo que ninguém controla. A leitura, que muitos imaginavam ser uma das poucas práticas humanas capazes de sobreviver intacta à mutação digital, está agora sendo dissolvida em algo que não é nem oralidade, nem escrita, nem propriamente humano.
A hipótese do “parêntese de Gutenberg” – segundo a qual o ecossistema de publicação inaugurado pela prensa de tipos móveis teria sido apenas um interlúdio entre eras mais fluidas de comunicação – sempre soou como exagero historicista. Mas o seu desfecho parece menos distante quando notamos que nem mesmo o “parêntese de Zuckerberg” sobreviveu a uma geração. O que se prometia como uma ágora global converteu-se, em poucos anos, num mercado de ruídos algorítmicos, onde a voz humana compete – e já perde – para entidades que não falam, mas processam.
Seria reconfortante pensar, como faz Joshua Rothman, que a ascensão da inteligência artificial representa apenas um ciclo natural: os livros, mortos como forma dominante de transmissão de ideias, “vingam-se” gerando criaturas de texto, híbridos de conversação e pensamento, que perpetuarão algo de seu legado. Mas tal metáfora, embora elegante, ignora o aspecto central da transformação. Essas simulações não prolongam a leitura; elas a dissolvem. O texto, antes uma janela para mundos possíveis, torna-se matéria-prima para engenhos indiferentes ao sentido – máquinas que não leem, mas indexam.
É aqui que a visão otimista de Tyler Cowen revela seu caráter quase cômico. Que a IA seja capaz de armazenar cada vestígio de pensamento humano não é garantia de memória, mas a negação dela. O esquecimento não é uma falha cultural: é sua condição. A capacidade de descartar o supérfluo, de julgar o que merece ser lembrado, foi o que tornou possível que sociedades aprendessem com o passado. Ao projetar uma era em que cada fragmento de vida será preservado – e utilizado para que algoritmos reconstituam “biografias perfeitas” – Cowen confunde acumulação com significado. Um arquivo infinito de banalidades não é cultura; é entropia digital.
Se a história da leitura está de fato entrando em uma nova fase, não é a de um renascimento, mas a de um crepúsculo. Não o fim do texto, mas sua transmutação em algo inumano, uma proliferação viral de vozes sem corpo. Como toda transformação tecnológica, ela será apresentada como libertação. Dir-se-á que as máquinas nos pouparão do trabalho de ler, que decantarão sentidos que nós, mortais falíveis, não conseguimos extrair. Talvez seja verdade. Mas toda promessa de libertação carrega em si uma nova servidão.
A leitura – essa forma anacrônica de intimidade com palavras que exigem tempo, silêncio e esquecimento seletivo – pode não desaparecer por completo. Sobreviverá como sobrevivem todas as práticas que o progresso declara obsoletas: marginal, subterrânea, cultivada por poucos que não confundem memória com arquivo nem sabedoria com simulação. O resto, embalado por máquinas que imitam a fala, viverá num presente perpétuo, alimentado por resíduos de um passado sem filtro.
No fundo, talvez seja essa a verdadeira “vingança dos livros”: não criar uma nova vida, mas assistir, de um lugar silencioso e obsoleto, ao triunfo de uma civilização que, ao preservar tudo, esqueceu o que importa.
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Gostei muito do seu artigo O Crespúculo da Leitura e a Vingança dos Livros. Ao ler sua escrita, reflito, penso, divago. Acho que nós, os humanos, enquanto resistirmos a esses artífices, venceremos! De alguma forma nós sempre resistimos àquilo que vai contra o humano; criando, falando, cantando, escrevendo, dançando, atuando, pintando o sete... Porque somente com o último homem, morrerá o último poeta, disse Freud no artigo Escritores Criativos e Devaneios. Na Divina Comédia Humana, enquanto houver espaço corpo e tempo e algum modo de dizer não, eu canto. (Belchior). Enquanto houver escritores como os citados aqui, incluindo o autor desse texto, aa IA vai perder. Obrigada!
ResponderExcluirQue assim seja.
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