Há quem confunda escrita com produção, literatura com performance, estilo com identidade de marca. Esquecem-se — ou talvez nunca tenham descoberto — que escrever é, antes de tudo, escutar. Escutar o quê? A si mesmo? Sim, mas não esse “si mesmo” domesticado pelas redes sociais e pelo narcisismo contemporâneo. Refiro-me ao si mesmo que ainda não está pronto, que se esconde no fundo de uma escuta difícil, quase sempre desconfortável.

E se alguém duvida que a grande literatura nasce desse silêncio radical, basta observar com atenção alguns de seus maiores cultivadores.

  • 1. Franz Kafka: o silêncio como angústia metafísica

Kafka não escrevia para o mundo, escrevia contra ele. Seu diário está cheio de passagens onde ele confessa que só conseguia escrever à noite, quando todos dormiam, quando o ruído social cedia espaço ao sussurro do inconsciente. O silêncio em Kafka não era paz, era tensão. Mas uma tensão fecunda. Escrevia sob o peso de um silêncio que mais parecia tribunal — e, ainda assim, foi nesse tribunal noturno que brotaram A Metamorfose e O Processo. A escrita para Kafka era uma forma de ouvir as engrenagens da alma funcionando em segredo.
  • 2. Clarice Lispector: o silêncio como gesto místico

Clarice é o exemplo mais puro da escuta radical. Sua literatura não parte de ideias, mas de uma sensibilidade que só poderia nascer da contemplação silenciosa do indizível. A famosa frase de A Paixão Segundo G.H. — “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” — só pode surgir de quem soube se calar diante da linguagem pronta, da frase pronta, da vida pronta. Clarice escrevia como quem esperava uma revelação — e revelações não gritam, sussurram. Para ouvi-las, é preciso ter feito silêncio por dentro.

  • 3. Simone Weil: o silêncio como ascese do pensamento

Filósofa, mística, ensaísta — Simone Weil escrevia como quem orava. Mas não com pieguice ou devaneio. Seu silêncio era rigoroso, disciplinado, quase matemático. Ela sabia que o pensamento só se torna verdadeiro quando cessa o desejo de convencer. Weil acreditava que a atenção — aquela mesma que Valéry exaltava — era a mais alta forma de amor. E amar, no sentido profundo, é calar-se diante do outro. Sua escrita é feita de pausas, de frases exatas, de recusa ao excesso. Há mais verdade num parágrafo seco de Weil do que em muitas páginas entusiasmadas.

Esses três — Kafka, Clarice e Weil — nada têm em comum, exceto uma coisa: sabiam calar. E por isso, souberam dizer. Cada um à sua maneira transformou o silêncio em matéria de linguagem. Não como ornamento espiritual, mas como exigência intelectual.

O escritor medíocre escreve como quem ocupa espaço; o verdadeiro escritor escreve como quem escava. E escavar exige silêncio: não se cava com as mãos cheias de palavras.

Não basta saber o que dizer. É preciso saber quando dizer. E isso só o silêncio ensina.



Nada se dissolve mais rápido que a crença de que pensar, por si só, transforma o mundo. Nascemos na ressaca de um país interrompido, entre planos econômicos com nome de ave e presidentes depostos por falta de decoro ou excesso de arrogância. Fomos ensinados, nas universidades, que compreender é resistir — e muitos de nós acreditamos nisso como quem agarra uma tábua no meio do naufrágio.

Mas havia uma armadilha nessa promessa. A proliferação de discursos, de teses, de corpos teóricos cada vez mais sofisticados e autorreferentes, longe de nos tornar agentes de transformação, pareceu anestesiar nossa capacidade de sentir o real. Como se, ao descrever a dor com precisão, pudéssemos evitar senti-la. Tornamo-nos especialistas na linguagem da derrota.

A expansão das universidades, as ações afirmativas, o acesso inédito a saberes antes monopolizados por uma elite — tudo isso foi e continua sendo uma vitória concreta. Mas essas conquistas foram recebidas por uma estrutura social exausta, sem imaginação política e com uma classe intelectual mais interessada em garantir prestígio interno do que em falar à sociedade. Sequer falamos entre nós: disputamos.

Ao mesmo tempo, no lado oposto do ringue simbólico, o anti-intelectualismo foi promovido a virtude. O ressentimento encontrou nas redes sociais sua catedral. As ideias perderam espaço para a performance. Pensar virou ofensa.

O mais grave é que muitos de nós, os que insistimos em pensar, começamos a atuar como se estivéssemos apenas escrevendo a crônica de um país que já foi embora. Como se coubesse a nós redigir a nota de falecimento da experiência democrática brasileira, com o capricho de um bibliotecário arrumando fichas antes do incêndio.

Nossas memórias políticas se organizam em marcos, como feridas que cicatrizam tortas: 2013, 2016, 2018, 2022. Datas que não passam. Elas se repetem, zombam de nós. O tempo linear perdeu soberania. Vivemos em ciclos, ou espirais descendentes.

Diante disso, talvez o verdadeiro gesto radical não seja oferecer mais uma análise, mas interromper o fluxo. Silenciar por um instante. Recusar a obrigação de produzir teoria diante da catástrofe. A lucidez, hoje, talvez more num ato quase infantil: lembrar — com imperfeição, com emoção, com febre. Lembrar não para compreender, mas para não trair quem fomos.

Porque, se nada mais resta, que reste ao menos o rastro dos que tentaram. Que alguém no futuro saiba que, entre memes e tanques, havia quem ainda buscasse um modo digno de existir neste país devorado pelo próprio espelho.



O que significa viver? O que significa viver de verdade — e não apenas existir como um item que ocupa espaço em reuniões, consome conteúdo, toma decisões por meio de checklists e entrega tudo no prazo? Há uma diferença abissal, e essa diferença, ainda que sutil, é a mais decisiva entre todas: a vida que se fecha e a vida que se abre. Aquela que reduz tudo ao já sabido e aquela que, mesmo diante daquilo que se crê saber, guarda espaço para o inesperado. É isso o que chamo aqui, para emprestar a linguagem do texto que me serve de partida, de “vida como aventura”.

A aventura, neste contexto, não é a peripécia exterior, o risco físico, ou a contação de histórias saborosas para animar festas. É, antes, uma atitude ontológica — uma maneira de estar no mundo. E o que essa atitude pressupõe é algo que se tem tornado cada vez mais raro: a disposição de não saber exatamente onde se está indo, e ainda assim ir. É o gesto de dar um passo não apenas sem ter todas as garantias, mas muitas vezes justamente porque não se tem garantias — e é esse passo que engendra conhecimento, que revela sentido, que desvela o próprio sujeito em sua relação com o mundo.

Vivemos hoje sob o império da orientação. Queremos saber o que fazer, o que ler, como pensar, quais são os top 10 hábitos dos gênios criativos, quais são os argumentos certos para vencer debates nas redes sociais. Isso não é exatamente novo — o desejo de mapa é tão antigo quanto o impulso de viagem —, mas parece que hoje o mapa substituiu a viagem. Vivemos a época da anti-experiência: a vida prefigurada em tutoriais, a sabedoria encapsulada em cortes de 30 segundos, o sentido entregue em mãos, como um delivery ontológico.

Acredito que o que se perdeu aí não é apenas uma forma de viver, mas o próprio contato com o real. Porque o real, por definição, é aquilo que não cabe no nosso esquema. O real resiste à simplificação, escapa aos bullets, transborda as molduras das apresentações e manuais. O real é justamente o que impõe o trabalho da experiência, o embate com o incerto. E o incerto é insuportável para uma consciência que não tolera a própria insuficiência.

Mas a insuficiência não é defeito — é ponto de partida. Toda aventura começa quando se admite não saber. O início do pensamento filosófico, como nos ensinava Sócrates, é a confissão da ignorância. Não sei — e é por isso que procuro. O que chamamos de “formação do imaginário” hoje, muitas vezes, é apenas uma maneira sofisticada de negar a procura. Busca-se blindagem, não abertura. Busca-se a formação do eu como um bastião fortificado, não como um campo em movimento.

A aventura, nesse sentido, é o que desarma. É aquilo que, ao invés de oferecer um resultado, abre um processo. É o que permite ser afetado por um livro, por uma paisagem, por uma conversa banal no ônibus. É o que permite não sair de casa com um destino certo, mas com uma disposição certa: a disposição de estar disponível ao que venha. O que os antigos chamavam de “flanar” é um ato de presença e de atenção — não é vagabundagem, mas vigilância radical. É a recusa de instrumentalizar a realidade segundo fins predefinidos.

E é essa recusa que hoje parece heresia.

Vivemos na era do resultado. Tudo precisa ser quantificável, produtivo, otimizado. A leitura precisa “servir” para algo. A conversa precisa ter um call to action. O texto precisa entregar um “valor”. O tempo livre precisa se transformar em tempo de performance. E até o amor precisa ser “inteligente”, com técnicas de “comunicação não violenta”, de “linguagens do amor” e toda uma gama de protocolos terapêuticos que domesticam o mistério.

Esse mundo não apenas detesta o inesperado — ele o neutraliza. E o faz com precisão clínica. Substitui o assombro pelo dado. A descoberta pelo tutorial. A viagem pelo unboxing. E, sobretudo, substitui o sentido pela utilidade.

Ora, sentido não se entrega como um brinde. Sentido é aquilo que se revela, e só se revela a quem suporta não saber o que está procurando. Sentido é como o gosto da água de uma torneira estrangeira: está ali o tempo todo, mas só se nota quando se muda de paisagem. Só se percebe o cheiro da terra natal quando se respira o ar de outro lugar. Só se entende a luz da infância quando se olha para trás com os olhos marcados pela experiência.

Por isso a vida como aventura exige uma postura contemplativa — e não há contemplação sem o tempo dilatado do processo. Tudo aquilo que nos forma de verdade nos toma tempo. Não há leitura transformadora na leitura apressada. Não há maturidade sem erro, sem hesitação, sem reconciliação com o fato de que o mundo é muito maior do que qualquer esquema, teoria ou método.

A vida como aventura também rejeita o modelo do mestre-magro-de-sobrancelhas-grossas que promete “ensinar X para você virar eu”. Isso é paródia do sagrado. O verdadeiro mestre não dá fórmulas: ele aponta abismos. Ele não diz “faça isso”, mas pergunta “você já olhou isso?”. Ele não entrega atalhos — ele evoca o esforço. É mais Hermes do que Prometeu, mais dançarino do que engenheiro.

E o mais irônico, como já foi bem observado, é que ao perdermos a aventura, começamos a falar dela de maneira compulsiva. A jornada do herói virou planilha. A ancestralidade, marketing. O mistério, recurso narrativo. O encantamento, storytelling. E tudo isso a serviço de um objetivo que já está definido: performar, influenciar, ganhar, vencer, subir, converter, escalar. A aventura virou etapa de funil.

Mas o real não cabe no funil.

Por isso insisto: recuperar a vida como aventura não é nostalgia, nem rebeldia romântica. É uma questão de sobrevivência espiritual. É, talvez, o último gesto de liberdade que ainda nos resta: não saber o que vai acontecer, e ir assim mesmo. Ir não para vencer, mas para ver. Não para convencer, mas para compreender. Não para simplificar, mas para suportar a complexidade.

Afinal, como dizia Antonio Machado, “caminhante, não há caminho — o caminho se faz ao andar”. E se faz mesmo quando erramos, tropeçamos, desistimos e voltamos. Porque o sentido não está no ponto de chegada, mas no modo como se caminha. A aventura, portanto, não é o que se conta no fim da vida — é o que nos impede de virar espectadores da nossa própria biografia.



O Brasil moderno vive um paradoxo crônico: somos, ao mesmo tempo, uma sociedade que avançou e uma civilização que hesita à beira do abismo. Nossa história recente não pode ser contada apenas pelos fracassos acumulados nem tampouco celebrada como uma narrativa de superação contínua. O que temos, de fato, é um país que conquistou muito — mas compreendeu pouco o que isso significa.

Nas últimas décadas, sobrevivemos à inflação descontrolada, estabilizamos a moeda, ampliamos o acesso ao ensino superior, garantimos políticas de inclusão racial, criamos mecanismos de proteção social minimamente eficazes. Muitos jovens negros, mulheres periféricas, pessoas antes invisibilizadas pela máquina estatal, puderam, enfim, acessar lugares historicamente negados. Tudo isso importa. Mas o Brasil é também o país onde essas mesmas conquistas são diluídas pela inércia institucional, por ciclos de escândalos, por uma elite política que se retroalimenta do caos que finge combater.

Não é possível escrever sobre o Brasil contemporâneo sem reconhecer os sinais de avanço civilizacional — mas tampouco é honesto ignorar que esses avanços ocorrem numa estrutura podre, montada sobre a areia movediça de um Estado desarticulado, de uma economia instável e de uma cultura política impregnada por ressentimento e simulações morais.

Nos anos 2000, falar de “desenvolvimento” ainda carregava um certo vigor. Nas universidades, os seminários e grupos de pesquisa apontavam para possibilidades reais de transformação. Hoje, esse vocabulário é ridicularizado como coisa de velho. Termos como “igualdade” ou “pacto social” são recebidos com desdém ou convertidos em memes — não porque perderam valor, mas porque perdemos a capacidade de sustentá-los com seriedade.

Os jovens da era digital vivem uma contradição tocante: são politicamente engajados como talvez nenhuma geração anterior foi, e ao mesmo tempo, frágeis diante do peso da realidade. A consciência de desigualdade racial, de violência de gênero, de estruturas históricas de dominação é valiosa — mas muitas vezes convertida em instrumento de disputa simbólica, onde a experiência vivida parece valer mais que a verdade objetiva. A “luta identitária” trouxe visibilidade e poder a muitos, mas também fragmentou o debate público, tornando-o incapaz de formular projetos comuns.

Nos acostumamos, como sociedade, a nos mover de crise em crise. A política virou espetáculo e a crítica, performance. A inteligência coletiva se perdeu num mar de diagnósticos brilhantes e ações pífias. Formamos uma geração inteira de analistas da conjuntura que sabem dissecar o corpo da nação com precisão cirúrgica, mas hesitam na hora de reanimá-lo.

Não se trata de desdenhar a academia, os ativismos ou as narrativas que emergiram dos lugares antes calados. Muito pelo contrário. Foram essas vozes que romperam o silêncio histórico de séculos. Mas o que se vê, com frequência, é que essas conquistas foram sequestradas por um narcisismo discursivo, onde cada erro vira heresia e cada nuance é suspeita de traição.

A esquerda se vê às voltas com sua própria multiplicação interna — fraturada entre a necessidade de construir maioria política e o imperativo moral de manter a pureza identitária. Já a direita, por sua vez, prefere o colapso a qualquer convívio com a complexidade. Uma escolhe o isolamento; a outra, o cinismo.

A tragédia brasileira não está na falta de ideias. Está no excesso delas — e na ausência de uma força moral comum que as una em algo mais do que táticas de curto prazo. Temos diagnósticos refinados, pesquisas densas, análises competentes. Mas, como numa peça kafkiana, esse saber se dissocia da ação concreta, como se a realidade fosse sempre uma peça que se escreve depois do fim.

Em meio a tudo isso, resta ao intelectual não a soberba do analista — mas a humildade do arquivista. Resta a quem escreve a tarefa de guardar não só as glórias e as desgraças, mas também as zonas de silêncio, os gestos ambíguos, as experiências que não cabem nos relatórios de pesquisa.

Talvez, daqui a décadas, historiadores consigam fazer sentido dessa babel teórica e dessa torrente de disputas simbólicas. Por ora, nossa missão não é julgar o presente como se dele estivéssemos fora — mas habitar essa bagunça com alguma lucidez, alguma ternura e alguma memória. E, quem sabe, recuperar a antiga, quase esquecida, arte de pensar o Brasil como um projeto coletivo, e não como uma arena de vaidades moralizantes.


Diferente de Blanchot e Didion, Karl Ove Knausgård não escreve sobre a morte como evento-limite, mas como um acontecimento ordinário que se instala brutalmente na rotina. Em A morte do pai, primeiro volume da série Minha Luta, a morte do pai não é um acontecimento heroico nem um trauma sublime: é um fato opaco, constrangedor, quase grotesco — e, por isso mesmo, devastador.

A narrativa de Knausgård é marcada por um paradoxo essencial: o desejo de registrar tudo com uma franqueza quase obscena (horas a fio lavando fezes, observando os detalhes domésticos da decadência do pai alcoólatra), e a simultânea consciência de que nenhum relato pode restituir o que foi perdido. Não há beatitude, leveza, transcendência ou metáfora. Há, no máximo, exaustão e vergonha.

Mas é aí que reside sua força: ao se recusar a romantizar a morte — ou mesmo a tratá-la como um "evento" —, Knausgård alcança o núcleo duro da experiência de luto. Como Didion, ele precisa escrever porque perdeu; mas ao contrário dela, não busca compreender nem elaborar — ele quer expor. Sua escrita é a tentativa de rasgar o véu do literário, arrancar a máscara da linguagem. Em vez de símbolo, excremento; em vez de epifania, repulsa; em vez de redenção, descrença.

O livro, no entanto, não é cínico. Pelo contrário: é movido por um desejo de verdade. Não uma verdade essencial, mas sensível — a verdade de estar presente em um corpo vivo enquanto outro corpo se desmancha. E nesse contato entre os corpos, e depois entre os objetos que restam (as roupas, os papéis, os cheiros), o narrador percebe que a morte do pai não é apenas a perda de uma figura: é a perda de um espelho, de um chão, de uma estrutura contra a qual ele se moldou — ou se rebelou.

O pai morto é mais presente do que o pai vivo. Isso é o que dói. E é essa presença insuportável, essa permanência do que já não é, que move o fluxo da narrativa.

Assim como em Blanchot e Didion, o tempo se fragmenta: não há passado nem presente estáveis, apenas uma constelação de imagens, ruídos e lembranças que se infiltram umas nas outras. Mas, diferente deles, Knausgård escolhe não trabalhar na chave da suspensão, mas da saturação: ele escreve demais, detalha demais, repete demais — como se quisesse afogar a própria angústia no excesso da linguagem.

Ao final, não há consolo. Só uma forma de continuar respirando — e talvez isso seja o máximo que a literatura possa oferecer diante da morte: o exercício de uma respiração irregular, mas ainda assim viva.



No curto e enigmático relato O instante da minha morte, Maurice Blanchot descreve algo profundamente paradoxal: o momento em que um “jovem homem” — talvez ele mesmo, talvez uma ficção de si —, colocado diante do pelotão de fuzilamento, sente uma “espécie de beatitude”. Nada como alívio, tampouco felicidade; mas algo mais leve que o próprio terror. Um sentimento que escapa a toda descrição, porque se situa antes da decisão, antes do disparo, antes do fim — “o passoalém”, diria ele, onde a vida e a morte se tocam, sem se confundir.

Essa “leveza”, que não é euforia nem transcendência, se configura como uma libertação do tempo e do Eu: uma suspensão radical que desorganiza as categorias do vivido. Esse instante é, como disse Derrida, inexperienciável — justamente por não poder ser incorporado à cadeia do sentido. Por isso, Blanchot não tenta narrar o que viveu: ele escreve o que não pôde viver, o que o excedeu. A forma do seu texto reflete isso: fragmentária, quase ausente, ela não oferece uma reconciliação, mas uma ferida ainda aberta.

Joan Didion, por sua vez, se encontra diante de outra espécie de morte: a morte súbita de seu marido, John Gregory Dunne. A experiência não é coletiva nem épica — é doméstica, íntima, silenciosa. Mas nela também há um instante congelado: aquele segundo em que John cai no chão e não volta mais. É a partir daí que ela registra sua própria forma de “leveza”, ou melhor, de descolamento do real. “O pensamento mágico” de Didion — acreditar que ele pode voltar, que o sapato dele deve ficar ali, que ela precisa poupá-lo da cremação — é um modo de negar o fim, de manter a narrativa suspensa, como se o ponto final ainda não tivesse sido escrito.

Em ambos os casos, o sujeito se vê deslocado da própria linguagem: Blanchot porque ela falha em dizer a proximidade da morte; Didion porque ela falha em reparar o dano da perda. Mas enquanto Blanchot permanece imóvel diante do abismo (“Estou vivo. Não, você está morto”), Didion tenta — ainda que fracassadamente — conjurar algum sentido a partir dos fragmentos da vida. Seu livro é uma investigação do tempo fraturado, do real colapsado, mas também uma forma de manter o outro vivo no ato da escrita.

O que os une é essa luta contra o apagamento. Ambos escrevem não para esquecer, mas porque esquecer é impossível. E porque, paradoxalmente, só se pode lembrar daquilo que nos escapa.



A literatura, em seus momentos mais altos, revela aquilo que o pensamento filosófico muitas vezes apenas contorna: a experiência do inominável, o que se oculta na dobra entre a vida e a morte, entre a perda e a linguagem. Quando Maurice Blanchot escreve O instante da minha morte, e Dostoiévski relata o abismo do fuzilamento iminente, o que emerge é menos um relato do que uma fratura – um intervalo no tempo onde o sujeito é suspenso entre a vida e o seu fim, e onde a linguagem tenta, como pode, manter a dignidade de dizer aquilo que não pode ser dito.

Não se trata aqui de fazer um mero paralelismo temático entre experiências de quase-morte, mas de observar como esse "instante impossível", como o chamou Derrida, funda uma ética da escritura, uma posição diante do mundo em que o escritor, longe de ser apenas aquele que narra, torna-se aquele que é narrado por um acontecimento que o excede. Blanchot e Dostoiévski não apenas sobreviveram – foram condenados a sobreviver, e a escrever a partir do escombro desse instante. Cada palavra, depois disso, é um gesto de fidelidade à morte que os tocou e os deixou ir.

Ora, essa mesma fidelidade ao instante impossível – mas desta vez deslocada da cena política ou da condenação penal para o território do íntimo e do familiar – atravessa o monumental ciclo autobiográfico de Karl Ove Knausgård, especialmente em A morte do pai. Ao contrário de Blanchot ou Dostoiévski, Knausgård não escreve sob o signo da suspensão da execução, mas sob o peso de uma morte real e banal – a de seu pai alcoólatra, encontrado morto em uma casa tomada por excrementos e garrafas vazias. E, no entanto, o sentimento que estrutura a narrativa é o mesmo: o fracasso do tempo ordinário, a fratura da cronologia, a incapacidade de representar o real com os instrumentos habituais da linguagem e da memória.

Em Knausgård, o instante da morte do pai é expandido à exaustão em páginas que desnudam o próprio gesto de narrar, exibindo-o como labor e fracasso. “A morte era real. Mas ao mesmo tempo era irreal. [...] Estava lá, mas era como se não estivesse”, escreve ele. O autor nos leva ao ponto em que a linguagem já não é um instrumento de controle, mas um campo de confronto: entre o desejo de compreender e a opacidade absoluta do fim do outro. A morte do pai é menos sobre o pai do que sobre o filho, e menos sobre a morte do pai do que sobre a incapacidade do filho de fazer essa morte caber numa moldura simbólica.

Joan Didion, por sua vez, oferece em O ano do pensamento mágico uma tentativa desesperada de ordenar o real após a morte súbita do marido. A morte aqui não é apenas o desaparecimento de um corpo, mas o desmantelamento de todo um sistema de sentido. Em sua busca obsessiva por explicações e rituais – pelas “formas corretas” de viver o luto –, Didion se vê confrontada não com o absurdo filosófico da morte, mas com a sua vulgaridade brutal, e sobretudo, com a sobrevivência que vem depois. “A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida como você conhecia acaba.”

A chave do livro está no termo “pensamento mágico”: a crença infantil, ou desesperada, de que a realidade pode ser revertida por um gesto simbólico, de que o morto pode voltar, de que tudo foi apenas um erro narrativo. Didion relê a experiência do luto não como interioridade psicológica, mas como tensão entre o simbólico e o real. O que a aproxima de Knausgård é justamente o reconhecimento de que o luto, ao contrário do que supõem os manuais de autoajuda, não segue estágios, não se resolve – ele se instala como uma falha na percepção, uma disritmia entre o que se vê, o que se pensa e o que se sente.

O que Dostoiévski, Blanchot, Knausgård e Didion partilham não é uma doutrina, mas uma estrutura de experiência. Neles, o instante da morte – vivida ou testemunhada – impõe à linguagem uma tarefa paradoxal: dizer o indizível, dar forma àquilo que dissolve toda forma. Em Dostoiévski, esse paradoxo se resolve em uma fé trêmula, um misticismo da regeneração pelo sofrimento. Em Blanchot, ele permanece como um buraco negro que puxa toda a linguagem para o centro de sua ausência. Em Knausgård, há uma estetização quase perversa da exposição de si, um esfolamento literário. Em Didion, um requiem racional, quase clínico, mas profundamente comovente em sua impotência.

A morte não comparece como evento, mas como estrutura do vivido. Não como ponto final, mas como dobra. E cada um desses autores, à sua maneira, torna-se testemunha desse instante em que a vida, por um segundo, se descola de si mesma e revela aquilo que sempre esteve lá: que viver é, desde sempre, habitar o intervalo entre o que passa e o que permanece. Escrever, então, é carregar esse instante consigo, como um fardo ou como uma bênção, e recusar a mentira reconfortante de que se pode seguir em frente como antes.

Porque “on voit le soleil”, sim – mas sempre do lado da sombra.


Choveu no dia seguinte ao enterro. Não uma chuva tempestuosa, mas dessas que parecem sussurrar luto — o céu, só então, parecia ter entendido. Era como se o tempo tivesse lido uma página atrasada de A Morte de Ivan Ilitch e apenas agora percebesse a gravidade da perda.

A ligação veio cedo, a voz de Anatônio — primo do meu pai, agora falecido — deslizou no fio como se não quisesse incomodar. Tínhamos conversado no cemitério, entre olhares úmidos e condolências envergonhadas. Anatônio trabalha atualmente na Fundação Hospitalar de Ipiaú. Havia um computador quebrado, equipamento usado em exames importantes. E alguém precisava resolver aquilo. Ele me chamou, talvez por cortesia ou pela lembrança de que, por anos, eu cuidara de hardware como quem cuida de relojoaria antiga. Mas já não tenho mãos nem tempo para essas tarefas; tampouco vontade.

Levei Francismar. Ele é da área, graduado, competente. Vive de dar aulas, como eu, e o dinheiro extra cairia bem. Como uma dádiva num momento de aperto.

Ao sair de casa, minha mãe descia também. Disse, quase distraída, que ia comprar ração para os cães e depois passaria na casa de dona Rosentina — a Capuchinha — e também na de Ednalva, para tratar de dívidas deixadas pelo falecido. Aquelas que ficam penduradas entre as paredes do luto. Como em Os Buddenbrook, parecia que a herança deixada pelo pai era mais feita de pequenas obrigações do que de bens.

Francismar terminou o conserto com a paciência de quem entende máquinas e silêncios. Resolvi acompanhá-lo até sua casa. Fazia dias que não conversávamos, não desde o enterro. Quis dividir o pagamento comigo. Gentileza sem lógica. Ele fizera todo o serviço. Eu apenas indiquei o caminho.

Em sua casa, a conversa se estendeu para os livros. Tinha comprado alguns para o filho — A Ilíada, A Odisseia, Os Miseráveis, O Senhor das Moscas — e outros para si — O Futuro de Uma Ilusão, O Mal-estar na Civilização, Além do Princípio do Prazer, e A Revolução dos Bichos. Impossível não escorregar para o meu habitual tom professoral. Falei sobre como esses livros haviam moldado minha formação, mencionando, talvez com entusiasmo desproporcional, que ler O Senhor das Moscas pela primeira vez foi como descobrir a selva dentro da civilização. Francismar ouviu, como sempre fazia: quieto, atento, sem julgamento.

Quando voltei, minha mãe ainda não estava em casa. Um peso começou a crescer no peito. Pedi a Bartíria que ligasse para Ednalva. Não, ela não estava lá.

Saí de moto. Passei pela casa de Capuchinha, depois pela de Dona Déu — sogra de Anatônio —, nada. O mundo parecia expandir-se em esquinas e ausências. Desci em direção à casa de Anatônio, cruzei o caminho do Ginásio de Esportes. E ali estava ela: minha mãe, firme como sempre, segurando a bicicleta. Dante Vasconcelos Teixeira — filho do artista Floriano Teixeira — bombeava o pneu, concentrado no gesto.

Parei a moto com um gesto indignado, o coração ainda acelerado:
— Não me dê susto!

Ela ergueu os olhos, surpresa:
— O que foi?

— A senhora sumiu. Eu não tinha notícias suas. Já estou com o emocional abalado.

— Tudo bem, vou subindo.

Agradeceu a Dante, subiu na bicicleta e se foi, sem pressa. Dante comentou algo sobre a revista em quadrinhos que emprestei — a primeira edição de Mister No: Revolução —. Pedi que aparecesse quando quisesse. Segui. Ainda passei na casa de Capuchinha para ajudar minha mãe com umas coisas. Pequenas tarefas, como quem costura o dia. E assim o cotidiano ia, feito um conto de Tchékhov: simples, breve, mas com algo invisível e pesado pairando sobre tudo.

Li em algum lugar sobre uma senhora em Elgin, Geórgia, que, ao perder o marido, mandou pintar a casa toda de azul-claro. Não por tristeza, dizia, mas para lembrar o céu que ele tanto falava querer tocar. As pessoas da cidade comentavam. Uns achavam bonito. Outros, coisa de quem enlouquece devagar. A verdade, se existe alguma, é que não sabemos o que fazer com a ausência. Fingimos que ela não pesa, que não puxa o ar dos pulmões, que não faz a luz mudar de cor.

O problema é que crescemos num mundo de espelhos reluzentes, onde só se reflete o sucesso, a potência, a vitória escancarada. Nos preparamos para subir, mas nunca para parar — e muito menos para cair. Somos ensinados a andar rápido, dormir pouco, sorrir sempre. Ninguém diz o que fazer quando o que nos resta é um copo de água na mão e nenhuma vontade de bebê-lo.

Essa pressa para ser feliz o tempo todo constrói uma mentira: a de que somos infinitos, indestrutíveis. Alguns até sonham com corpos duradouros, cérebros eternamente jovens, como se a medicina fosse um feiticeiro capaz de adiar o inevitável. Mas há um ponto em que o corpo se recusa a continuar, e a alma, por mais treinada que esteja, fraqueja. E nisso há beleza. Há um aprendizado que mora no fim das coisas — mas só se a gente deixar o fim falar.

Lembro de outra leitura sobre um enterro em Takoradi, Gana. Carregavam o caixão como se fosse um altar dançante, com cantos altos e passos largos. Havia lágrimas, sim, mas elas vinham misturadas a riso e gratidão. Celebravam o que foi, não apenas o que se perdeu. Também ouvi falar de um povo nos confins do Xingu que, ao despedir-se dos seus, partilha uma refeição com misturadas a pequenas porções das cinzas do falecido — não por morbidez, mas para que o corpo sinta o adeus, para que a dor seja matéria, não fantasma.

Acho que o luto precisa de gesto. Não basta o silêncio. Nem o travesseiro molhado. É preciso inventar uma forma — um vestido azul, um canto antigo, um prato com sabor de lembrança — para que a ausência não se transforme em buraco. Que ela tenha bordas. E nome.

O que me falta?, O que faço com isso que perdi?, Com quem posso dividir esse peso?. Filosofia, se tem serventia, é essa: ensinar a chorar sem vergonha, e a seguir mesmo quando o chão não parece confiável.

Porque fingir que não dói é como conversar com um espelho — e esperar que ele responda.


A tarde parecia suspensa, como se o tempo caminhasse sobre almofadas. Recebemos a visita de Valdirene e seu menino, Ravi. Eles chegaram com olhos úmidos e gestos contidos, daqueles que sabem que a presença pode consolar mais que qualquer palavra. Os abraços duraram um pouco mais que o habitual — talvez por medo de soltar demais.

Conversamos com voz baixa, como quem não quer acordar o passado que repousa em cada canto da casa. Relembramos o domingo anterior, dia 8, um daqueles dias comuns que, em retrospecto, ganham um brilho de presságio. Estávamos todos juntos. Minha mãe, sempre cuidadosa, havia preparado o acarajé. Ele se empanturrou, riu alto, limpou a boca com o guardanapo e disse: “Estou satisfeito.” E aquilo, agora, me soa como uma linha de despedida escrita com feijão fradinho e azeite de dendê quente.

O relógio ia esbarrando nas cinco quando decidi sair. Disse que ia até a padaria da Praça do Cinquentenário buscar pão. Valdirene e Ravi permaneceram com minha mãe. O trânsito na região estava travado, como se até os carros tivessem algo a lamentar. Comprei o pão, um pote de manteiga, e retornei devagar, como quem carrega algo frágil demais para acelerar. Quando cheguei, Valdirene e o menino se despediram e seguiram para casa.

Depois que a porta se fechou e os visitantes sumiram na distância, fiquei sozinho na cozinha. A sacola ainda na mão, o pão ainda quente, a manteiga começando a suar dentro do pote. E ali, de repente, sem aviso, senti: o luto não é ausência, mas transbordo. É quando a lembrança não cabe mais dentro da memória e começa a escorrer pelos olhos, pela garganta.

Ali, no silêncio da casa ainda cheia de cheiros e marcas dele, entendi: luto não é só dor. É também amor acumulado, sem endereço. E tudo que resta a fazer é repartir — em pedaços de pão, em memórias contadas devagar, em receitas repetidas como orações.


Gostaria de dizer, para fins poéticos, que o cemitério, naquela manhã, parecia engolido por uma névoa sutil que não vinha do tempo, mas de algo anterior, talvez da noite — como se a cidade ainda não tivesse acordado totalmente para a notícia da morte. Mas a verdade é outra.

Era uma manhã de muito calor, do tipo que se anuncia abafada já nas primeiras horas, e que vai se adensando à medida que o tempo passa — como se o próprio dia compartilhasse do peso da ocasião. O sol, implacável, atravessava os tecidos que cobriam os ombros dos presentes, e o suor escorria lento, sem cerimônia, pelas têmporas e nucas. Naquele enterro, como em tantos outros, o calor parecia uma espécie de ironia silenciosa diante da frieza da morte. À medida que o cortejo se aproximava do fim, a sensação era de sufocamento: pela temperatura, pela tristeza, pelas palavras não ditas.

As últimas presenças foram se esvaindo em silêncio. Restaram apenas dois jovens, quase tímidos em seus gestos, como se invadissem um território reservado aos mais velhos: Taislane e Ivan, estudantes de Letras, que haviam ido não por obrigação, mas por um certo pacto afetivo que ultrapassa as convenções acadêmicas.

Juliano, que acompanhara o cortejo até o portão de ferro do cemitério e chegou a entrar, despediu-se com honestidade desarmante: sua mulher o esperava. A vida se impunha, mesmo diante da morte. Giovanna, outra figura breve porém notável, cruzou o velório no limiar de sua rotina – desceu a rua a caminho do trabalho e, por alguns minutos, compartilhou a solenidade dos que pararam.

Houve outros: Arlete, José Carlos, Mônica, Gabriel – nomes que, isolados, talvez não digam muito, mas naquele contexto desenhavam uma rede tênue de solidariedade. Soube depois que a professora Izabel, diretora do departamento, também passara por lá, em algum momento em que eu estava distraído ou ausente. Os gestos foram inesperados. Pequenos, mas profundamente tocantes. E me lembraram, com uma pontada de lucidez melancólica, a delicadeza com que Sigrid Nunez retrata o luto – não como ruptura brutal, mas como uma lenta e contínua surpresa diante do cuidado dos outros.

É coisa notória entre leitores de boa fé que um romance de verdade — aquele que exige do leitor não apenas atenção estética, mas também uma forma de conversão existencial — só se deixa compreender à luz de uma tensão interior irredutível, de uma ferida aberta no espírito. “O amigo”, de Sigrid Nunez, é um desses livros raros que não se prestam a interpretações utilitárias ou moralistas, mas que expõem, com precisão quase cruel, a condição mesma do homem moderno diante da morte, da linguagem e da impossibilidade da comunhão.

Trata-se, externamente, de uma história simples. Um amigo próximo da narradora comete suicídio. Pouco tempo depois, a viúva entra em contato para lhe dizer que o falecido expressara o desejo de que, em caso de alguma eventualidade, ela cuidasse de seu dogue alemão. A partir daí, o que parecia ser um gesto de generosidade se converte, nas mãos de Nunez, num labirinto moral, emocional e metafísico. A narradora, constrangida pela presença do cão gigantesco num apartamento minúsculo de Nova York — e ameaçada de despejo, já que o prédio não permite animais —, começa a ruminar as razões ocultas daquele pedido. Por que ela? Por que não uma das três ex-mulheres? O que começa como anedota doméstica logo se transforma numa sondagem do inefável: da opacidade da alma humana, da precariedade dos vínculos, da mentira embutida na linguagem da intimidade. Mas o centro de gravidade do livro, seu eixo invisível, é o luto — não o luto como ritual, mas como estado metafísico.

É claro que o cão também não está ali por acaso. Nada no romance está. Nunez compreende, como poucos, que os animais nos revelam precisamente o limite do nosso conhecimento do outro. O leitor mais atento verá que, entre as linhas do livro, espreita a velha questão platônica: é possível conhecer a alma de um ser que não fala — ou cuja fala, como no caso dos humanos, talvez seja mais véu que revelação? E assim, entre silêncios caninos e memórias interrompidas, a narradora é compelida a revisitar a própria relação com o morto — esse amigo cuja ausência se impõe como um novo tipo de presença, terrível e inelutável.

É inevitável: à medida que a vida se prolonga, o véu das ilusões juvenis se rasga, e nos deparamos com o rosto nu da realidade — a morte, o luto, o abandono. Não se trata de pessimismo: é apenas maturidade. Nunez, talvez sem querer, mas não por acaso, toca nesse nervo exposto da existência com um estilo que se aproxima do que chamo de inteligência da melancolia — uma lucidez desconfortável, mas imprescindível.

A figura da mãe, tal como descrita por Nunez em sua memória, resume com perfeição esse dilema: uma mulher infeliz, sufocante, mas dona de uma beleza que perturbava e de um senso de humor que florescia no meio do naufrágio. Tal combinação — a amargura da vida doméstica e a graça sardônica diante da desgraça — lembra aquelas figuras trágico-cômicas de Tchekhov ou de Nelson Rodrigues: gente que ri com um pé no abismo.

Mas mais impressionante ainda é o papel que essa mulher desempenha como sacerdotisa informal dos animais feridos do bairro. Há uma imagem profundamente arquetípica aí: a bruxa do conto de fadas, a mulher-loba que fala a língua dos bichos. Não é mera excentricidade. Há um simbolismo profundo no fato de que, numa época em que os vínculos humanos se desfazem com a rapidez de um clique, ainda se cultive, mesmo inconscientemente, a fidelidade silenciosa dos animais.

Nunez herda isso. E por isso sua prosa, embora aparentemente discreta, causa um incômodo persistente. Não por ser chocante — mas por ser verdadeira. A relação entre a narradora e o animal não é um capricho sentimental: é um símbolo da tentativa de manter alguma centelha de sentido no mundo do colapso.

Vivian Gornick, crítica de timbre respeitável, acertou ao apontar que a força de Nunez está menos na trama e mais na “inteligência senciente” da narradora — e é precisamente esse o ponto que escapa aos leitores treinados apenas pela pedagogia do entretenimento. O que Nunez faz é colocar em cena uma consciência que pensa, que julga, que se angustia — em vez de uma vítima muda dos acontecimentos. Há, nesse tipo de prosa, uma herança quase esquecida dos moralistas franceses e da autobiografia filosófica que o modernismo americano enterrou sob montanhas de experimentalismo estéril.

E qual é o tema por excelência dessa consciência? A morte, claro. Mas não a morte como evento, e sim como horizonte. A narradora sabe que o cachorro envelhece, que a morte do amigo a persegue como um espelho escuro, e que todo o gesto de amor é também uma preparação para a perda. E, no entanto, insiste em cuidar do cão — não porque acredita em ilusões, mas porque compreende que o amor é uma espécie de resistência à desintegração.

Essa obsessão, como Nunez mesma admite, não é mórbida: é simplesmente humana. A morte não é uma anomalia da vida — é a sua moldura. Negá-la, ignorá-la, ou substituí-la por slogans de autoajuda não a torna menos real. Ao contrário: torna a vida mais estúpida. Ao escrever sobre isso, ela não se isola do mundo — ela se liga a ele em sua condição mais autêntica. “Se você vive o suficiente, você perde”, diz. E nisso há mais sabedoria do que em milhares de livros de psicologia popular.

Seus romances posteriores aprofundam esse mesmo gesto: em O que você está enfrentando, o pedido de ajuda para uma eutanásia obriga a narradora a encarar os limites da compaixão. Em Os vulneráveis, o confinamento pandêmico e o cuidado de um papagaio se transformam numa espécie de meditação forçada sobre o tempo, a solidão e a fragilidade humana. Tudo isso é feito com sobriedade, sem aquele sentimentalismo vulgar que tantas vezes acompanha temas como esses. Nunez escreve como quem sabe que a elegância é uma forma de decência — e que a decência é o último refúgio da alma num mundo em ruínas.

Pedro Almodóvar — outro artista que, ao chegar à velhice, começou a olhar a vida de frente — adaptou O que você está enfrentando para o cinema, chamando o filme de O quarto ao lado. O nome é apropriado: o quarto ao lado é onde todos estamos, em relação à morte. E, como já dizia Pascal, todo o mal do homem vem de não saber ficar sozinho num quarto. Nunez nos coloca nesse quarto, mas não nos abandona ali. Ela nos oferece, ao menos, a companhia silenciosa de um cão, o riso amargo de uma mãe infeliz, e a palavra honesta de quem pensa — e sente — com profundidade.

Ao deixar o cemitério, já acomodado no carro da minha tia, voltei o olhar, quase por descuido, para a rua estreita que se erguia em direção ao chamado "Cemitério Novo". Foi então que os avistei: Taislane e Ivan, caminhando lado a lado, afastando-se devagar, as silhuetas dissolvendo-se na luz abrasadora da manhã nordestina. Havia naquela cena uma harmonia inesperada — a singeleza do gesto, o silêncio cúmplice, a cadência quase cerimonial dos passos — que me comoveu de maneira imediata e profunda. Eles ignoravam minha presença, e justamente por isso eram autênticos em sua humanidade essencial: apenas caminhavam, simplesmente humanos, sem espetáculo, sem esforço.

E foi ali, nesse instante furtivo, que compreendi algo que palavras costumam deformar: que é nos pequenos gestos, nos atos não ensaiados, que a dignidade humana se revela em sua forma mais pura. Um abraço dado sem testemunhas, uma mão estendida sem pompa, a presença de alguém que permanece mesmo quando não há mais nada a dizer — tudo isso pode reordenar silenciosamente a nossa percepção do mundo. Não como uma epifania grandiosa, mas como uma brisa que limpa o ar após uma tarde abafada.

Aquela visão fugaz me reconectou, por um fio invisível, a algo que a dor parecia ter rompido: a esperança. Não a esperança ingênua que espera o impossível, mas aquela que reconhece a beleza do que resiste em meio ao fim — o gesto de consolo, o andar conjunto, o respeito calado. Ao ver Taislane e Ivan seguirem adiante, compreendi que, apesar de todas as perdas, a humanidade ainda pode se insinuar nos interstícios da morte — e que, às vezes, basta isso para que a vida siga tendo sentido.

Edísio e seu cachorrinho Lucky


Ele olhou o celular pela terceira vez. O gesto, mais do que casual, era um sinal claro: o tempo o pressionava. O visor marcava 8h25 da manhã, uma terça-feira comum no calendário, mas nem tanto no coração. Na Praça Antônio Linhares, em Ipiaú, o cenário era quase encantador — mesas e cadeiras plásticas, moldes vazados com temáticas de flores e borboletas sobre panos de prato estendidos. A missão: ensinar senhoras da Universidade Aberta à Terceira Idade (UATI), campus XXI da UNEB, a pintar com moldes vazados. A realidade: as tintas, que deveriam ser acrílicas, eram guache. Escolares. Laváveis. Ou seja, inúteis. Mas não diziam isso a elas. Ainda não.

O pedido por materiais fora feito no início do ano, mas a burocracia é um bicho moroso. Enquanto esperavam, improvisavam. Arlete — determinada, prática, lúcida, como só mulheres que organizam o caos sabem ser — guardara potes e caixas nunca usados, provavelmente herança de algum projeto esquecido em outra gestão. Agora, entre as senhoras, ela transitava com leveza, sabedora de que é a paciência quem garante a sobrevivência de programas como aquele.

Na noite anterior, ele dera aula na disciplina de “Cânones e Contextos da Literatura Portuguesa”. O seminário corria como de costume até que um texto de Saramago provocou uma virada. “Aproveitar o tempo com quem se ama” — dizia o trecho. E então, como se alguém houvesse aberto uma janela para dentro, os alunos começaram a se confessar. Uma estudante contou que a mãe operara em Salvador; por isso, ela faltara duas semanas inteiras. Outro, um homem que não escondia sua ternura pelas raízes, relatou o sofrimento ao ouvir do irmão que, agora casado, sua família era a esposa. Não a mãe. Nem o irmão.

Ele também falou. Falou demais. Uma coisa que vinha fazendo desde que retornara para Ipiaú quase dois anos antes. O tom da aula ficou catártico, confessional. Ao fim, todos estavam emocionalmente exaustos — e, de algum modo, um pouco mais próximos.

Mas ali, sob o céu claro da terça, o clima era outro. Havia até risos. Arlete parecia elétrica, quase saltitante. Andreia, incansável, dava orientações. Oliver, o monitor da UATI, conduzia gravações como quem dirigia um curta documentário sobre afetos invisíveis. Quando lhe passou o microfone, ele disse que aquelas aulas o revigoravam — e era verdade. Sempre saía dali mais leve, com o corpo ainda cansado, mas o ânimo renovado.

Então, o telefone tocou.

Era uma ligação de WhatsApp. Na tela, a foto de Edísio, seu padrasto — um homem sem grandes gestos, mas de presença firme, que o criara desde os oito meses de vida. Atendeu sem pensar. A voz da mãe veio do outro lado, em um atropelo desesperado:

— Filho, Edísio está morto. Está morto!

E a ligação caiu.

Ficou paralisado por um instante. A incredulidade o agarrou pelo ombro. Arlete, percebendo algo estranho, o olhou em silêncio. Ele respondeu:

— Meu pai morreu.

— Como assim? — ela perguntou, já se levantando. Ele saiu correndo para a biblioteca comunitária. Não queria contaminar a manhã ensolarada e as senhoras da terceira idade com a escuridão da notícia.

Ligou de volta. A prima Aline atendeu, voz baixa, quase administrativa:

— Ele está caído. Parece que está morto. Chamamos a SAMU.

Ouviu a mãe dizendo que ela não havia ligado novamente, como quem se justificasse.

Arlete já estava acionando Eliseu e Andreia. A cadeia de cuidado funcionava. Eliseu veio na direção dele:

— Cadê a chave da moto, professor?

— Eu consigo ir pilotando — respondeu, quase automático.

— Não. O senhor vai com Arlete. Eu levo sua moto.

Pegou o capacete, a mochila. Nem sabia se se despediu das alunas. Entrou no carro de Arlete. Ela ligou o motor:

— Onde é?

— Na Invasão.

Ela franziu o cenho. Já subiam a ladeira da antiga feirinha quando comentou:

— Conheço tudo isso aqui, mas sempre chamei de Bairro Euclides Neto.

— É isso mesmo. Mas a gente ainda chama de Invasão, por causa dos conflitos dos anos 70.

A conversa morreu na curva.

Ao chegarem, o carro da SAMU já estava estacionado. De dentro da casa, gritos. A mãe, fora de si. Gente demais. Objetos fora do lugar. Uma confusão doméstica que só a morte sabe fazer. Capuchinha — Rosentina da Silva Cintra — sua avó postiça, mais de noventa anos e um corpo que parecia tecido de algodão, gemia num tom que perfurava tudo. Três agentes da SAMU faziam perguntas.

Arlete tentava consolar Capuchinha. Ele, a mãe. Ela dizia já ter tomado o remédio para arritmia. Ednalva, a irmã do morto, dera a ela um comprimido que depois descobririam ser para diabetes. A mãe nunca fora diabética. Mas quem raciocina em meio ao pânico?

Dr. Eduardo, o médico, disse o que nenhum dos presentes queria ouvir, mas precisava:

— É preciso viver o luto. E, por favor, não deem remédio a ninguém.

Com Andreia, a prima, não a da UATI, ele tentou levar Capuchinha para a casa de seu Deone, o vizinho de mais de quatro décadas. A senhora não aguentava subir escadas. Ele a carregou nos braços, uma imagem que mais tarde pensaria ser simbólica demais para acreditar. Não adiantou. Minutos depois, ela voltava, sentada à cama, sendo amparada por Arlete.

No meio disso tudo, surgiu o cachorro. Lucky. Vira-latas. Companheiro inseparável de Edísio. A mãe queria levá-lo para casa, juntar-se a Pitéu, outro cão — esse um basset mestiço. Pediu a Isack, filho da prima Andreia, que buscasse a ração e as carnes guardadas no congelador. Onde o corpo fora encontrado.

Foi então que soube que fora a própria mãe quem o encontrara. Passara para chamá-lo — ele sempre ajudava nas compras. Estranhou o silêncio. Forçou a porta. Viu o corpo caído. Uma poça de sangue ao redor da cabeça. Achou que escorria do nariz. Mas não. Havia marcas roxas. Estava ali havia horas.

Foi procurar a comida. Subiu com Isack. Esperava não ver nada. Mas viu. A cena, intacta. O corpo caído, o traço da morte ainda presente. A poça. A ausência. O cheiro daquilo que não se nomeia. Lembrou de Knausgård, de seu A Morte do Pai: o impulso de remover o corpo do local da morte é um impulso de autopreservação. A morte não tem dignidade.

Karl Ove Knausgård escreve com a precisão cirúrgica de quem sabe que a dor se revela nos detalhes mais banais: o cheiro, o chão sujo, a posição do corpo. Há algo no modo como ele descreve o ambiente — e não a ausência em si — que nos diz mais sobre a finitude do que qualquer elegia. A morte, para Knausgård, não é uma abstração filosófica ou um símbolo — é um problema logístico. Uma urgência prática. É o que nos obriga a limpar o chão depois do corpo ser removido. Não há nobreza nisso. Apenas necessidade.

Ler Karl Ove é enfrentar o constrangimento de estar vivo ao lado de algo que já não está. E, naquela casa em Ipiaú, o que o atravessou não foi o luto imediato, mas uma espécie de choque com a estética da morte. O corpo ainda estava ali, em breve não estaria, mas tudo o que o cercava permanecia. Como se o falecimento não tivesse sido um evento, mas uma saturação de presença.

Pensou também em Joan Didion, e no modo como ela descreve, em O Ano do Pensamento Mágico, a morte súbita do marido como um gesto sem sentido. "A vida muda em um instante. Você se senta para jantar e a vida como você conhecia acaba." A frase parece simples, mas não é. Ela nos alerta para o fato de que a morte, além de ser um fim, é também uma mudança de narrativa. Um colapso de rotina. E, sobretudo, um problema de linguagem. Porque depois que acontece, tudo o que conseguimos dizer parece insuficiente.

Entre o olhar seco de Knausgård e a dor analítica de Didion, há um campo comum: ambos entendem que a morte não nos exige apenas lágrimas — exige lucidez. E essa lucidez, por vezes, é o que mais machuca. Porque ela aparece no momento em que precisamos continuar. Organizar os pertences. Buscar ração no congelador onde alguém caiu morto. Carregar uma avó idosa enquanto o corpo ainda está quente no quarto ao lado. Continuar, mesmo assim.

É nesse ponto que literatura e vida se tocam: quando o que se escreve parece menor do que aquilo que se sente — e, ainda assim, é a única forma de nomear o silêncio.

Pegou a vasilha. Desceu.

A mãe já se preparava para sair. Sandrinho, marido de Aline, levaria ela e o cachorro. Ele os seguiu na moto. Chegaram juntos em casa. Vizinhos já sabiam. Bartíria. Cristiane. A outra Aline, a agente comunitária.

Eram dez da manhã. O dia mal começara. E a vida já tinha lhe roubado mais um capítulo.


Caso ainda lhe tenha escapado, há uma força discreta, porém universal, que perpassa a totalidade da experiência humana — do andarilho desamparado ao acadêmico laureado: a dilaceração silenciosa da espera.

Somos criaturas tensionadas pela expectativa. Ansiamos por transformações redentoras, por notícias que quebrem o marasmo, por vozes que nos resgatem do abismo cotidiano, por afetos que transcendam a trivialidade. E, nesse estado de suspensão crônica, marchamos como espectros alimentados por uma esperança sempre adiada, com a vã crença de que o porvir trará sentido ao caos.

Esse impulso que nos impele — a esperança, esse simulacro de ânimo — é igualmente o lastro que nos submerge. Sustenta-nos, é verdade, mas à custa de angústia e desapontamento. Trata-se de uma promessa que se posterga indefinidamente, que nos exila do presente, transformando o agora em um palco de ausência. Um narcótico administrado em doses sutis, mas contínuas.

Os helenos arcaicos intuíram essa dinâmica — não como crença, mas como percepção cristalina da condição humana. Não aguardavam redenção vinda do além; ao contrário, encaravam a vulnerabilidade da existência sem o consolo de mitos transcendentes. Talvez compreendessem, melhor que nós, que a vida não é um enigma a ser decifrado, mas uma sucessão de feridas a serem atravessadas. E que o sentido, se há algum, é obra do homem, não dos deuses.

Tome-se como ilustração o episódio paradigmático de Pandora. Os deuses — projeções alegóricas da psiquê coletiva — moldam a figura feminina como oferenda e castigo simultâneos. Hesíodo, ao descrevê-la como um “mal encantador”, reconhece a ambivalência daquilo que fascina e, ao mesmo tempo, devasta.

A ela é confiada uma ânfora selada, cuja natureza se oculta sob o véu da interdição. Proíbem-na de abri-la. Naturalmente, o interdito suscita transgressão. Quando enfim a tampa se rompe, escapa o conteúdo: não dádivas, mas a tessitura bruta da realidade — enfermidades, miséria, aflição, finitude. A catástrofe não é acidente da vida humana: é seu pano de fundo constante. Apenas o ingênuo moderno, nutrido a manuais de autoajuda e promessas de “vibrações elevadas”, poderia sustentar o oposto.

Mas o gesto cruel e engenhoso dos deuses reside no detalhe final: ao fundo da jarra, permanece a esperança. Que entidade é essa, senão o artifício psíquico que nos impede de sucumbir à vertigem do desespero? A derradeira ilusão. O fiapo de sentido que perpetua o martírio, acenando com miragens de plenitude que jamais se realizam.

Neste ponto, o mito revela sua precisão simbólica: a esperança é uma entidade bifronte. Alavanca e algema. Nos obriga a continuar, mas nos nega repouso. A espera contínua é o traço patológico de uma civilização marcada por ansiedade crônica e desejo de transcendência não consumada.

Poetas e pensadores, ao longo dos séculos, debruçaram-se sobre essa constatação — não por devotamento religioso ou otimismo pueril, mas por lucidez. Compreendiam que todo ato de revelar — inclusive o de escrever — cobra um tributo. Anne Carson adverte: ao se abrir algo, abdica-se do domínio sobre aquilo. Está correta. Cada palavra lançada no papel é uma rendição ao irreversível.

W. H. Auden enxergava na narrativa pandórica uma advertência contra o delírio iluminista de que tudo pode — e deve — ser decifrado. O apetite desmedido pelo saber pode converter-se, paradoxalmente, em aniquilação cultural. Pois há verdades cuja nudez é insuportável — e que, uma vez reveladas, não podem mais ser empurradas de volta para as sombras. E então? Resta apenas suportá-las.

Eis por que os mitos persistem: não por força de encantamento místico, mas por sua acuidade analítica. São formas visuais da angústia, instrumentos de nomeação do indizível. Não curam — mas iluminam. E isso, em noites em que o mundo silencia e apenas a consciência permanece em vigília, é mais que suficiente. Pois é nesse interstício de lucidez e tormento que nos encontramos: sustentados apenas pelos signos que forjamos para não naufragar.

Com ceticismo solidário,

J. Fagner
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