Vivemos um tempo em que a arte, essa velha companheira dos nossos delírios e misérias, foi convocada a servir como funcionária subalterna de um tribunal moral permanente. A cinefilia, que outrora — ao menos em nossa mitologia retrospectiva — se pretendia busca apaixonada e errante, tornou-se mais uma província do interminável esforço moderno de policiamento das almas. Não há obra que escape incólume: antes mesmo de existir enquanto experiência, ela deve atestar sua conformidade com um catecismo ideológico de turno.

Chocamo-nos com esse comportamento como se fosse uma aberração nova, mas ele não passa de uma reencenação particularmente caricatural de uma velha esperança moderna: a de que, se apenas conseguíssemos purificar o mundo de seus desvios — morais, políticos, estéticos — finalmente repousaríamos na certeza. A arte seria então a confirmação permanente de nossas crenças; o mundo, por sua vez, uma sala de espelhos.

A inquietação que Sérgio Alpendre (V. 'O Agente Secreto' é bom, mas peca em excesso de ideias e final frustrante) registra — esse amor e ódio instantâneos, pré-obra, pré-experiência — é apenas o sintoma mais recente de uma patologia duradoura: a crença de que nossas identidades políticas podem nos proteger da dissonância, da dúvida, da estranheza. O “lado certo da história”, que agora serve de bússola universal, promete uma orientação segura, mas apenas porque reduz a complexidade da vida humana a uma batalha pueril entre torcidas. Em nome da política, abrimos mão do que é mais valioso: não a neutralidade impossível, mas a autonomia sempre frágil do pensamento.

A modernidade, com seu império de promessas, fez-nos crer que o debate público é o lugar onde a razão triunfa, onde o melhor argumento vence. Mas eu — cético das certezas emancipatórias — penso que as ideologias são apenas religiões com pior literatura, e que sua tarefa essencial é oferecer abrigo aos que temem a contingência do mundo. A polarização estética nada mais faz do que seguir esse impulso: entregar nossas percepções à vigilância de uma ortodoxia que decide, antecipadamente, o que pode ser admirado e o que deve ser banido.

O problema não é novo. A literatura sempre resistiu a esse uso instrumental, não por virtude — virtudes são outra forma de superstição —, mas por natureza. Ela é multívoca, escorregadia, demasiado humana. Reúne ambiguidades como quem coleciona feridas. E é justamente por isso que, como dizia Lionel Trilling, os autores dignos de serem lidos são aqueles que ferem nossos valores mais íntimos com a mesma facilidade com que nos iluminam. A arte desobedece; e é por isso que tantos tentam domesticá-la.

Mas o que assusta não é o gesto higienizador — esse é tão antigo quanto Platão. O que assusta é a voluntariedade com que nos submetemos a ele: nossa ânsia de que interpretam por nós aquilo que nos inquieta. Não suportamos mais a solidão diante de uma obra. Queremos segurança, não experiência. Queremos sentido, não risco.

E no entanto, os grandes escritores — os tão canceláveis quanto indispensáveis — sempre souberam que a moralidade humana não cabe em nossos esquemas. Riobaldo, ao lamentar as “ideias arranjadas”, já intuía aquilo que as democracias liberais, as utopias revolucionárias e a cultura digital insistem em ignorar: que, por trás de nossas doutrinas, existe apenas o “mundo-humano”, refratário, imprevisível, cheio de contradições que não se deixam pacificar.

Talvez por isso seja tão difícil admitir algo tão simples: é possível admirar profundamente uma obra que contradiz tudo aquilo que defendemos. É possível ser transformado por um autor cuja cosmovisão rejeitamos. É possível — e talvez necessário — reconhecer que a arte que mais importa é aquela que nos estraga as certezas, que nos priva da pureza moral à qual secretamente aspiramos.

As obras que sobrevivem — Borges, Guimarães Rosa, Nabokov, Eliot, Mencken, Kraus — não são manuais de conduta, mas laboratórios de conflitos. Elas não nos tornam melhores; tornam-nos mais conscientes da vastidão de nossas falhas. E não há nada mais politicamente subversivo do que isso.

Pois se tudo isso soa sombrio, é porque ainda acreditamos que o papel da arte seria nos reconciliar com o mundo. Eu vos digo o contrário: não há reconciliação possível; o mundo é menos um enigma a ser decifrado do que uma sucessão de forças indiferentes a nossos projetos. A verdadeira libertação está em desistir de dobrá-lo ao nosso desejo.

E, paradoxalmente, é exatamente isso que nos devolve algo que as polarizações contemporâneas nos roubaram: o prazer de não saber previamente o valor de uma obra.

A arte não deve ser o prolongamento das nossas convicções — deve ser o intervalo em que elas são suspensas. Quando abrimos mão do sonho de pureza, recuperamos aquilo que as torcidas digitais não podem oferecer: a possibilidade do encontro inesperado, do estranhamento, da nuance que escapa ao nosso vocabulário político.

No fim, política pode estar em tudo, mas política não é tudo. A vida interior — esse espaço frágil, sempre em risco — cresce justamente onde nossas certezas falham. Nas lacunas, nas ambiguidades, nas dissonâncias.

E é por isso que, diante do filme que ainda não vimos, do livro que contradiz nossas crenças, do autor que seria repudiado por qualquer tribunal contemporâneo, ainda podemos dizer, com Borges — e contra todos os que desejam reduzir o mundo a slogans:

There are more things.

Como em tantas encruzilhadas históricas, a pretensão de neutralidade revela menos prudência do que medo — e prepara o terreno para formas renovadas de servidão


Há momentos na vida política em que a busca pelo equilíbrio deixa de ser uma virtude e se converte em superstição. A democracia liberal, tão orgulhosa de seus rituais de moderação, descobre tarde demais que sociedades não se sustentam apenas por normas, mas por hábitos de imaginação — e, sobretudo, por uma disposição para encarar o perigo sem rodeios. O Brasil de 2018 não foi uma exceção à regra; foi apenas uma versão tropical de um fenômeno recorrente na história moderna: quando instituições se aferram a um ideal abstrato de imparcialidade, a barbárie encontra um caminho fácil para se apresentar como alternativa legítima.

Desde então, parte considerável da imprensa brasileira se aferrou a uma narrativa confortável: a ascensão da extrema direita teria sido um acidente fomentado pelos excessos de seus adversários. Trata-se de um conto de inocência conveniente. Ao transformar a catástrofe em simetria, a imprensa adota um modo de interpretação que, na superfície, parece equilibrado, mas que na essência dissolve responsabilidades. É assim que a brutalidade se naturaliza: não como ruptura, mas como mais um ingrediente na receita de uma polarização inevitável.

Esse movimento não é novo. Ao longo do século XX, democracias maduras cultivaram formas sutis de autoengano justamente para evitar encarar o fato de que a liberdade não é o estado natural das sociedades, mas uma exceção frágil sustentada por vigilância constante. O jornalismo brasileiro, em sua adesão ao “outro lado” como mantra profissional, repete o erro clássico das democracias fatigadas: insiste em submeter a verdade ao protocolo. A fórmula, repetida à exaustão, acaba por legitimar um dilema falso — como se a violência política fosse uma opinião e não um método.

Os relatos recentes de repórteres perseguidos, ameaçados e expostos à crueldade das milícias digitais revelam a assimetria que o discurso da neutralidade tenta soterrar. É revelador que tais obras, apesar de valiosas, ainda hesitem em examinar a cumplicidade estrutural da imprensa na fabricação do monstro que agora tentam descrever. É o velho paradoxo liberal: denunciar os abusos do poder enquanto se resiste a admitir que, por ação ou omissão, ajudou-se a criar as condições que os tornaram possíveis.

John Stuart Mill acreditava que a liberdade florescia quando todas as posições eram expostas e confrontadas à luz da razão. Mas Mill viveu antes de a política se tornar um ramo especializado da indústria do ressentimento. Uma imprensa que insiste em enquadrar a violência como opinião não está exercitando o pluralismo; está, involuntariamente, celebrando uma forma de irracionalismo que reduz a vida democrática a espetáculo.

O doisladismo, essa versão moderna da velha prudência burocrática, opera como uma tecnologia do desgaste moral. Ele transforma agressões em “controvérsias”, falsificações em “alegações”, ameaças explícitas em “declarações polêmicas”. A adversativa é seu instrumento preferido: tudo é dito para que nada seja afirmado. É uma retórica que devolve ao leitor um mundo neutro — e portanto irreal — no qual todas as forças merecem idêntica consideração. A história, porém, é pródiga em demonstrar que a neutralidade diante da selvageria não é moderação; é capitulação.

Jana Viscardi, ao chamar atenção para os detalhes aparentemente banais da linguagem jornalística, aponta para aquilo que sociedades frequentemente se recusam a ver: a política começa na gramática. Cada “suposto”, cada “denunciado por”, cada construção que evita o sujeito responsável pelo dano, opera como um mecanismo de anestesia coletiva. A linguagem que pretende apenas descrever o mundo acaba por moldá-lo — e geralmente em benefício daqueles que já detêm poder.

O episódio da republicação de um texto de Jair Bolsonaro numa antologia dedicada à celebração da democracia revela a que ponto chegamos. Não se trata de um gesto de pluralismo, mas da consagração tardia de um instinto autodestrutivo: o de acreditar que a democracia, para ser fiel a si mesma, deve acolher até aqueles que desejam destruí-la. A história mostra que essa magnanimidade raramente termina bem. Ao tentar ser generosas com seus inimigos, democracias acabam trocando a autocrítica pela indulgência — e a prudência pela autoparódia.

O jornalismo, ao adotar o doisladismo como marca de responsabilidade, sacrifica justamente aquilo que lhe daria utilidade pública: a capacidade de discriminar. Sociedades não desmoronam porque seus inimigos são fortes, mas porque aqueles que poderiam resistir preferem ser vistos como razoáveis. A imprensa brasileira, ao suavizar o intolerável, pratica um tipo de melancolia política típica de épocas de esgotamento: a crença de que a estabilidade pode ser preservada mesmo quando a verdade é deformada.

A catástrofe, como sempre, não chega de súbito. Ela se insinua através de escolhas prudentes, editorias equilibradas, manchetes ponderadas. É na busca ansiosa pelo centro que democracias se perdem; e é na recusa em aceitar a assimetria moral do conflito que o liberalismo revela sua vocação trágica. O Brasil recente apenas confirma esse padrão: quando a imprensa decide que a realidade é inconveniente, quem triunfa não é a verdade, mas o poder.

No fim, o que os últimos anos revelam é algo que tenho reiterado a propósito das democracias contemporâneas: não somos vítimas de forças extraordinárias, mas de nossas próprias ilusões. A neutralidade, tão celebrada como garantia de civilidade, transformou-se em álibi para evitar confrontar o óbvio. E, como sempre, o preço da recusa em olhar para o abismo é acabar vivendo dentro dele.



Há uma crença persistente na imaginação moderna: a de que toda diferença notável é, no fundo, uma forma de promessa — um prenúncio de excelência, uma semente de grandeza, um recurso que o indivíduo, como uma pequena empresa de si mesmo, deveria saber explorar. Essa crença é tão arraigada que raramente percebemos seu aspecto mais brutal: ela recusa à vulnerabilidade qualquer reconhecimento que não seja lido como falha pessoal.

As chamadas “altas habilidades” habitam exatamente essa zona de crueldade conceitual. São celebradas como se fossem uma vantagem moral, quando na verdade muitas vezes são apenas uma forma mais intricada de desamparo. A sensibilidade extrema — à luz, ao ruído, às texturas e ao tumulto emocional do convívio humano — é descrita como refinamento, mas vivida como fragilidade.
No imaginário progressista, talento é um triunfo; na experiência concreta, é frequentemente uma armadilha sensorial.

Não surpreende que, para muitos, a infância e a adolescência tenham sido períodos de suplício. O mundo social das crianças é uma pequena hierarquia de sobrevivência: tudo o que não se conforma ao padrão é punido, não por maldade, mas por instinto. Quando essa diferença ocorre no contexto da pobreza, ela ganha tons mais severos. O pobre não tem o privilégio de ser excêntrico. A miséria exige uniformidade. Ela tolera pouco e perdoa menos.
Em bairros carentes, uma criança sensível não é vista como promissora — é vista como defeituosa.

A modernidade tenta nos convencer de que todos somos livres para nos reinventar, mas essa liberdade nunca existiu fora dos slogans. A maior parte do que determina nossas vidas — temperamento, intensidade sensorial, capacidade de adaptação — nos antecede. Acreditar no contrário é apenas mais uma ilusão humanista. As culturas variam, mas o desconforto diante do diferente é constante. E assim o “dotado”, deslocado por natureza, vê sua diferença transformada não em reconhecimento, mas em suspeita.
Na cidade pequena, ele se torna arrogante por existir; na cidade grande, irrelevante por não performar.

Quando a sociedade discute minorias, costuma pensar naquelas que se encaixam na narrativa progressista: grupos que podem ser transformados em símbolos edificantes. Pessoas com altas habilidades não servem a esse propósito. São desconfortáveis demais, intensas demais, difíceis demais de domesticar. A cultura prefere seus desajustados carismáticos — não aqueles que paralisam diante do excesso de realidade.
Assim, permanece o equívoco: vê-se privilégio onde há apenas outro tipo de sofrimento.

O aspecto mais sombrio disso tudo é que não existe resolução redentora dentro do próprio mito humanista. Não há um ideal de autonomia que possa corrigir a sensação de inadequação constante; não há política pública que elimine o descompasso entre o indivíduo e o mundo; não há narrativa que transforme vulnerabilidade estrutural em triunfo pessoal sem falsificá-la. A sociedade moderna idolatra o talento, mas apenas quando ele entretém, produz ou inspira. Quando ele apenas dói, ela o descarta.

E no entanto — é exatamente nesse ponto que algo como catarse pode emergir — a lucidez que acompanha essa condição é uma forma de libertação que o mundo não sabe nomear. Ao perceber que suas “altas habilidades” não são uma promessa, mas um limite; não uma dádiva, mas uma forma específica de fragilidade; não um privilégio, mas um modo particular de exposição ao sofrimento, algo improvável acontece: a ilusão meritocrática finalmente desmorona.

E com ela cai também o peso da expectativa alheia.

O que resta, depois que o mito se dissolve, não é desespero, mas uma liberdade rara:
a liberdade de não precisar justificar a própria existência em termos de utilidade, brilho ou excepcionalidade.
A liberdade de abandonar o papel que nunca pediu para representar.

Aquela mesma sensibilidade que um dia foi vivida como fraqueza — e que o mundo tratou como extravagância — finalmente pode ser enxergada como aquilo que sempre foi:
não um dom, não um fardo, mas simplesmente a forma específica de estar no mundo que lhe coube.

E aceitar essa realidade, tal como ela é — sem redenção, sem promessa, sem narrativa — pode ser, paradoxalmente, o gesto mais profundo de liberdade que um ser humano pode realizar.

Um olhar cético sobre envelhecer, fracassar e prosseguir — mesmo quando a vida insiste em não oferecer sentido algum



A leitura do ensaio Eu, um velho, de Roger Angell, caiu sobre mim como caem certas verdades incômodas: tarde demais para serem evitadas, cedo demais para serem recebidas com serenidade. Angell descrevia a velhice com a naturalidade brutal de quem já não precisa se justificar. Eu, ainda prestes a completar 35 anos, percebi que aquele texto não era sobre ele — era sobre mim. A lombar doendo, o desejo rarefeito, as noites partidas ao meio por despertares abruptos — tudo ali era uma espécie de prelúdio fisiológico daquilo que viria a ser, mais cedo ou mais tarde, a derrocada silenciosa do corpo.

Nietzsche dizia que “a maturidade do homem consiste em reencontrar a seriedade que tinha quando criança ao brincar”. Nada me parecia mais distante. Eu acordava pensando que havia fracassado nos pontos decisivos da vida, imaginando que mais de noventa por cento dos meus sonhos — tão vibrantes na juventude — jamais se realizariam. Não por tragédia, mas por estatística. A idade já tinha passado, a chance já tinha passado; eu estivera enclausurado no interior da Bahia, afastado daquilo que se costuma chamar de “o mundo”. Reconhecer isso não me trouxe iluminação alguma; apenas a fria compreensão de que ajustar expectativas não é sabedoria, mas sobrevivência.

Relembro tudo isso hoje porque a mãe de um grande amigo morreu. Um desses poucos que a vida nos permite chamar de irmão. E, como sempre, chega-se à notícia com a incompetência emocional que nos caracteriza: nunca estamos prontos. Não sei se visito ou recuo, se escrevo algo ou me calo. O sofrimento alheio é, como lembrou Kafka, “uma porta diante da qual só se pode bater do lado de fora”. E não há protocolo que resolva essa assimetria.

Mas a morte dela, como tantas mortes, acendeu outra percepção: estamos avançando na fila. Sucedemos nossos pais quase sem notar. Tornamo-nos, sem aviso, a geração mais velha. Não tenho filhos, mas já estou próximo da terceira idade. Os jovens agora são os filhos dos meus amigos — essa é a nova régua da passagem do tempo. A vida não só passou; passou por mim como um trem expresso enquanto eu ainda procurava a plataforma.

Alguns acham impressionante o pouco que alcancei. O comentário é sincero, mas errado. Eu queria muito mais. O saldo é essa sensação difusa de transitoriedade, de impotência, de ausência de significado — o mesmo vazio que Camus reconhecia quando dizia que “não há destino que não se vença pelo desprezo”. O problema é que não cheguei ao desprezo; cheguei apenas ao cansaço.

E talvez seja somente isso. Como escreveu Philip Larkin, poeta que entendia o envelhecer com desconfortável clareza, “o que restará de nós é o amor”. Mas a cética experiência humana — aquela que John Gray jamais nos deixaria romantizar — sugere algo ainda mais árido: o que resta de nós é o intervalo entre um desaparecimento e outro.

E é aqui que a catarse se insinua, não como consolo, mas como lucidez: a vida não tem sentido, nunca teve. É justamente por isso que ela nos obriga a caminhar. Somos criaturas que envelhecem, perdem, falham, e ainda assim continuam — não por esperança, mas porque parar seria apenas antecipar o fim.

Talvez a vida seja isso: um breve lampejo entre duas noites. E, ao aceitarmos isso sem medo, tudo aquilo que parecia perda absoluta se revela, enfim, como liberdade.



Poucos lugares revelam mais sobre nós do que os armários que tentamos manter fechados — não por medo do passado, como gostam de supor os psicólogos amateurs, mas por indiferença prática. O esquecimento, ao contrário do que pregam as religiões seculares do progresso interior, não é um fracasso da alma. É uma estratégia de sobrevivência. A memória, quando desperta, é um animal solto numa casa pequena demais.

Dizem que a vida moderna é saturada de objetos; mas isso é apenas uma forma educada de constatar que as pessoas colecionam simulacros do que não viveram. Tudo aquilo que está encostado no fundo do armário — óculos de armação redonda, um caderno da escola, uma camiseta com o cheiro de um ano que já não existe — não são relíquias de um eu essencial. São resíduos de identidades que nunca chegaram a se completar. A cultura ocidental insiste em falar do “verdadeiro eu” como se fosse uma estátua enterrada num sótão e que só precisa ser desempoeirada. Mas quando abrimos o closet, não encontramos o mármore de uma estátua: encontramos plástico, metal, tecido — matérias que envelhecem sem adquirir sabedoria.

A memória involuntária, esta entidade literária que Proust imortalizou, é frequentemente romantizada como um sopro da transcendência. É mais prudente vê-la como um curto-circuito. Enquanto buscamos o documento burocrático que permitirá ao nosso dia continuar, somos surpreendidos por um objeto sem utilidade aparente, que acende por engano um feixe de conexões nervosas apagadas. A experiência é perturbadora não porque revela algum segredo profundo, mas porque recorda algo que preferimos ignorar: não comandamos o que nos constitui. O passado não retorna para oferecer sentido — retorna para demonstrar que o sentido nunca esteve sob nosso controle.

Cada lembrança que emerge do fundo das gavetas possui a crueldade silenciosa de um animal selvagem. Não anuncia intenções; simplesmente aparece. A psicologia moderna tenta capturá-la com diagnósticos: déficit de atenção, tendências ruminantes, traços de nostalgia. A moral civil das sociedades avançadas, sempre ansiosa por vigiar os desvios, propõe comprimidos para domar esses movimentos inesperados do espírito. A aventura interior, dizem, é sintoma. Mas se existe alguma forma de aventura possível para nós — criaturas que já não acreditam em deuses, nem confiam muito na razão — ela se encontra precisamente nessa falha, nesse tropeço da consciência que abre, por um instante, uma passagem para algo que escapa a qualquer manual.

O objeto encontrado, entretanto, não pede que o veneremos. Ele pode ser descartado sem cerimônia, como fazemos com quase tudo. A maioria das pessoas, como Bento Santiago, fecha o armário com o mesmo zelo com que fecha a narrativa da própria vida. O passado é convocado apenas para legitimar uma acusação, para sustentar um ressentimento, para provar que nunca nos enganamos. A memória involuntária ameaça esse projeto porque não obedece ao princípio de utilidade. Ela oferece vislumbres de alegria sem propósito, lampejos de beleza que não servem para nada — e o ego, que vive de funções e finalidades, sente-se insultado.

É por isso que a maioria sai do closet segurando, não o objeto que brilhou na sombra, mas o documento que permite continuar riscando Xs na agenda. A continuidade — essa ficção de que somos a mesma pessoa que fomos ontem — exige uma devoção diária. Lembrar demais é perigoso: pode dissolver o frágil pacto entre o corpo dolorido e a história que ele repete mecanicamente.

Há quem veja nisso uma tristeza. Mas a visão é ingênua. O ser humano não é feito para uma grande revelação. Somos, na melhor das hipóteses, coletores de fragmentos. Às vezes, um pedaço de metal frio na mão — o aro de um óculos antigo — irradia uma sensação quase gloriosa, e imediatamente desaparece. Nada é recuperado por completo. Nenhuma vida é restaurada como uma restauração de museu. A memória devolve coisas que não pedimos, e recusa as que suplicamos. Não nos recompensa por esforço algum.

Talvez seja esse seu único gesto de liberdade.

O passado, afinal, não é um relicário nem um tribunal; é um depósito indiferente. Não guarda lições nem confissões. Se algo nele parece sagrado, é apenas a persistência inexplicável de um odor, de uma textura, de uma tarde que reaparece sem necessidade. E nisso a vida revela seu caráter mais profundo: não há progresso, não há direção, não há redenção — apenas ciclos de esquecimento interrompidos por acidentes de lembrança.

Se existe sabedoria, ela não está em buscar o tempo perdido, nem em condenar Capitu, nem em tentar reconstruir a própria biografia com a pretensão de dominá-la. Ela talvez resida apenas na capacidade de reconhecer que, ao abrir um armário, entramos num território onde nada nos pertence completamente. Um território onde somos visitantes, não autores.

A memória é uma aventura, sim — mas do tipo que o ser humano suporta apenas em pequenas doses, como quem contempla um animal selvagem através das grades. Aproximar-se demais seria perigoso. Tocá-la de verdade talvez destruisse mais do que ilumina.

E, no entanto, de vez em quando, o animal salta. E nós estremecemos, ainda vivos.

Como lealdades nacionais nascem menos de virtudes cívicas e mais de tradições de conflito, memória seletiva e necessidade humana de dar sentido ao inevitável


As sociedades modernas gostam de imaginar que escolheram deliberadamente seus símbolos e valores; que as nações são obras de engenharia racional e que a lealdade coletiva pode ser decretada ou abolida conforme a conveniência intelectual de cada época. É um engano confortável. A maior parte do que sustenta um país — e, por vezes, a única parte que o sustenta — escapa ao controle das crenças conscientes. A identidade nacional é menos um projeto do que um resíduo: restos de memórias, hábitos, tradições e mitos que persistem apesar da razão, não por causa dela.

Em países onde a modernização ocorreu como sucessão de rupturas e não como sedimentação lenta, os símbolos nacionais tendem a parecer caricaturas. Não porque sejam intrinsecamente falsos, mas porque perderam a função que um dia exerceram. A ironia — mal disfarçada, quase sempre automática — com que muitos brasileiros tratam sua própria história revela mais do que uma simples irreverência juvenil: expõe um vazio. Onde a continuidade histórica foi fragmentada, os símbolos tornam-se objetos estranhos, como relíquias de um culto desaparecido. Resta zombar deles ou transformá-los em adereços ocasionais, úteis apenas para festas esportivas e campanhas publicitárias.

O contraste com sociedades que tiveram de encarar suas tragédias sem a proteção de ilusões consoladoras é instrutivo, mas não exatamente edificante. Nessas culturas, o que se chama de patriotismo costuma ser apenas a memória sedimentada de violências sucessivas, não uma virtude cívica. As narrativas comuns que emergem desses choques não expressam coesão moral, mas a necessidade humana de converter o sofrimento em sentido. O caso americano ilustra isso: sua coesão não nasce de fé no progresso — um mito tão frágil quanto qualquer outro — e tampouco de alguma benevolência estatal. É produto de guerras internas, expulsões, tensões raciais e disputas religiosas que continuam a moldar a vida cotidiana. Se existe ali um sentimento de pertencimento, ele não é sinal de esclarecimento, mas de uma tradição de conflitos repetidos o bastante para parecerem um destino compartilhado. A lealdade, nesses contextos, não passa de um reflexo de sobrevivência.

O Brasil, como muitos países cuja modernidade foi recebida “de fora”, jamais completou o processo de transformar memória comum em autoconsciência histórica. O que existe é uma sucessão de episódios mal costurados — golpes, reformas improvisadas, grandes projetos nacionais que evaporam tão rapidamente quanto surgem. Num cenário assim, a ironia torna-se o afeto dominante, não porque o povo seja mais lúcido, mas porque não encontrou ainda um enredo ao qual se vincular.

Há, no entanto, pequenas zonas de continuidade — e são elas que costumam gerar perplexidade nos observadores. Comunidades de imigrantes, que conhecem de perto horrores que a maioria dos brasileiros só imagina em abstrações escolares, veem no país um refúgio. Sua gratidão nasce do contraste. Os militares, por sua vez, formam uma casta anacrônica no sentido literal: vivem num regime temporal diferente. Suas instituições preservam uma narrativa nacional contínua — não necessariamente verdadeira, mas estável — num ambiente social onde quase tudo é transitório. Seu patriotismo não é uma ideologia: é um hábito, um costume transmitido entre gerações, como um artesanato moral. Numa civilização de curto prazo, são vestígios de uma era em que o dever ainda podia significar alguma coisa.

Mas não se deve romantizá-los. Tradições que sobrevivem ao seu próprio contexto podem tornar-se perigosas; podem reinterpretar o passado à sua conveniência, assim como fazem os seus críticos. A disputa por narrativas — a tentativa de controlar não apenas o futuro, mas também o passado — é inevitável. Em sociedades sem raízes profundas, porém, essa disputa assume proporções desproporcionais. A memória torna-se um campo de batalha onde a cada geração o passado é reescrito, não para esclarecer, mas para legitimar novos grupos de poder.

A ilusão do progresso histórico — essa crença segundo a qual sociedades avançam linearmente rumo a uma condição mais livre, justa ou consciente — só agrava o problema. Imagina-se que a irreverência com símbolos nacionais seja o resultado de uma maturidade recém-alcançada. Não é. É apenas a expressão de uma ordem social que perdeu a continuidade que torna tais símbolos inteligíveis. Onde não há memória partilhada, resta a sátira; onde não há tradição viva, resta a nostalgia ou a manipulação.

Se há uma lição a ser tirada, é talvez esta: nações não se sustentam por escolhas racionais, mas por formas de vida que não podem ser projetadas ou abolidas por decreto. O patriotismo não é virtude quando imposto, nem superstição quando espontâneo. É apenas um modo de reconhecer que nenhum indivíduo existe sozinho no tempo — que nossas biografias dependem de histórias que não escrevemos. A verdadeira decadência de uma sociedade não está em deixar de acreditar em seus símbolos, mas em esquecer o que esses símbolos tentavam exprimir.

Num mundo governado por narrativas instantâneas, preservar qualquer memória profunda — civil ou militar, religiosa ou secular — torna-se um gesto de resistência. Não para restaurar um passado idealizado, mas para impedir que o presente se torne inteiramente arbitrário. Sem esse fio de continuidade, toda forma de vida coletiva dissolve-se no curto prazo. E então não haverá símbolos dos quais rir — apenas slogans a serem repetidos.

Um ensaio sobre como sociedades modernas transformam intelectuais em adereços ideológicos, congelam obras vivas em narrativas convenientes e utilizam a memória de Gilberto Freyre para legitimar suas próprias ilusões — políticas, acadêmicas e nacionais


Na maior parte das nações modernas, o destino de um grande pensador não é ser compreendido, mas ser utilizado. Primeiro ele ajuda a romper um horizonte intelectual estreito; depois é mumificado, recortado, convertido em logotipo de alguma narrativa nacional. Em vida, incomoda. Morto, torna-se decoração. Gilberto Freyre é um caso exemplar — não tanto pela originalidade do seu pensamento, mas pelo uso que dele fez uma sociedade obcecada em transformar qualquer inteligência em instrumento de autoafirmação.

O relato consagrado — fixado por Antônio Cândido, em tom polido e aparentemente neutro — parece, à primeira vista, um capítulo edificante da história das ideias no Brasil. Três livros, três autores, uma “redescoberta do Brasil” na década de 30: Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre. A narrativa é simples: métodos novos, importados dos grandes centros, substituem os resquícios de positivismo e evolucionismo oitocentistas; as ciências sociais brasileiras, enfim, alcançam a maioridade. Tudo isso desenhado como se a história do pensamento fosse um percurso de depurações sucessivas, indo do acanhado ao complexo, do atraso à maturidade — a velha fantasia do progresso, reencarnada, agora, em forma acadêmica.

John Gray lembraria que esse tipo de arranjo narrativo não é uma descrição da realidade, mas um mito de origem. Não há “chegada à maturidade” na história das ideias; há apenas substituição periódica de ilusões. O que se apresenta como “superação” metodológica costuma ser apenas mudança de moda, alinhamento a novos centros de prestígio, reacomodação de ambições locais a linguagens universalistas. No Brasil dos anos 30, o marxismo reformado de Caio Prado, a escola histórica francesa de Sérgio Buarque, a antropologia boasiana de Freyre não foram a irrupção súbita da Razão, mas a adaptação oportunista de uma elite periférica aos códigos legítimos do pensamento mundial.

O que tornava essa adaptação especialmente eficaz, no entanto, era a coincidência com um projeto político autoritário que precisava de uma alma. O regime Vargas, com sua mistura de nacionalismo, autoritarismo e cálculo pragmático, não era guiado por qualquer compromisso com a verdade. Mas tinha um talento raro: saber que ideias, mitos e símbolos valem mais do que decretos. Por isso absorveu, com avidez, as criações intelectuais da época. O governo não se limitou a tolerar a cultura; apropriou-se dela, fez dela um espelho lisonjeiro.

Vargas percebeu rapidamente o poder de certas fórmulas. De Sérgio Buarque, tomou a “cordialidade” do brasileiro como traço nacional; de Caio Prado, a leitura marxista filtrada pela necessidade da industrialização; de Freyre, o anti-racismo mestiço, convertido em mito de origem da nação. Ao mesmo tempo em que investia em Villa-Lobos como símbolo de elevação musical e promovia o samba a emblema oficial da “musicalidade popular”, o regime costurava um retrato de país em que tudo parecia convergir para uma única moral: o Brasil era singular, conciliador, mestiço, naturalmente vocacionado para um destino histórico benigno.

Para Gray, isso não seria sinal de vitalidade cultural, mas de uma característica mais sombria: a capacidade das sociedades modernas de transformar diagnósticos complexos em slogans tranquilizadores. A cordialidade, em Sérgio Buarque, era conceito ambíguo, quase trágico; no discurso nacionalista, virou autoelogio sentimental. O anti-racismo freyreano, nascido de uma crítica aos delírios hierárquicos do racismo científico, converteu-se numa espécie de indulgência automática: se somos mestiços, estamos absolvidos de qualquer culpa. O marxismo de Caio Prado, concebido como crítica estrutural, terminava servindo como justificativa para a industrialização protecionista. Não era a verdade que triunfava, mas a utilidade.

Quando regimes autoritários incorporam ideias sofisticadas, não é porque tenham se elevado intelectualmente, mas porque descobriram que toda teoria pode ser convertida em ornamento ideológico. A modernidade não aboliu o uso instrumental do pensamento; apenas substituiu teologias por sistemas seculares — marxismo, nacional-desenvolvimentismo, psicologias coletivas, antropologias da identidade. Cada uma promete não apenas explicar o mundo, mas fornecer um roteiro para transformá-lo. Em troca, pede uma lealdade que pouco tem a ver com a busca de verdade.

O episódio posterior — a apropriação acadêmica de Freyre pela USP, a partir de Antônio Cândido e de uma geração de marxistas universitários — é apenas a continuação desse processo por outros meios. A homenagem polida, que o consagra como um dos “precursores” de uma fase gloriosa do pensamento nacional, tem o efeito de colocar o autor numa prateleira bem definida: pioneiro, datado, superado dialeticamente. Casa-Grande & Senzala é elevado a marco inaugural, mas ao preço de ser reduzido a um simples degrau na escada que leva ao “reino uspiano das luzes”. A glória do homenageado torna-se, afinal, o prólogo da glória do homenageante.

Para Gray, nada mais previsível. Em qualquer tradição acadêmica consolidada, os mortos são reorganizados de modo a legitimar o poder dos vivos. A Aufhebung marxista, aplicada a Freyre por Carlos Guilherme Mota, obedece a essa lógica: reconhece virtudes “progressistas” no autor, mas as trata como sementes destinadas a florescer somente numa geração posterior — aquela, naturalmente, à qual o intérprete pertence. O que não cabe nesse roteiro é descartado como “reacionário”, “sobrevivência”, “esclerose ideológica”.

Vale notar que o critério de juízo não é a coerência interna da obra, mas a posição política do autor em relação ao regime da hora. Darcy Ribeiro, que defendia basicamente a mesma visão de miscigenação que Freyre, foi poupado de condenações equivalentes porque se alinhou ao campo considerado “certo”. A mesma teoria, quando utilizada por adversários, torna-se suspeita. O que muda não é o conteúdo intelectual, mas a distribuição das lealdades. A ciência é julgada não por suas razões, mas pelo lado em que os cientistas se colocam no mapa afetivo da guerra política.

Essa lógica friend/enemy, descrita por Carl Schmitt e tão rejeitada em público quanto praticada em privado, é precisamente o terreno em que floresce a figura que Freyre batizou de “intelectuário”: o híbrido de intelectual e funcionário — do partido, do Estado, da seita. O intelectuário não busca compreender; busca administrar significados em favor de um grupo. Seu horizonte não é a verdade, mas a utilidade estratégica. Ele pode citar Boas, Weber ou Marx, mas apenas na medida em que esses nomes reforçam a identidade da tribo.

A criação desse conceito é uma das ironias mais finas na trajetória de Freyre. Na tentativa de entender por que homens com ótima formação científica pervertiam a linguagem da ciência em retórica sectária, ele acabou tocando num traço estrutural da vida intelectual moderna. Em todas as democracias de massa, a figura do intelectuário tornou-se central: editorialistas, professores militantes, especialistas que se movem com a mesma desenvoltura em congressos acadêmicos e palanques. Eles não são aberrações; são adaptações bem-sucedidas a um ambiente em que prestígio simbólico depende de alinhamento moral.

Gray diria que isso não é um desvio acidental, mas o destino normal das ideias num mundo em que a política substituiu a religião como fonte de sentido. Quando as crenças religiosas perdem sua centralidade, o vazio não é preenchido por uma “razão neutra”, mas por ideologias secularizadas que exigem o mesmo tipo de devoção e produzem o mesmo tipo de heresia. O marxismo universitário, o nacional-progressismo varguista, o anti-racismo celebratório, o populismo cultural são apenas variações locais dessa tendência geral: transformar teorias em símbolos de fé, e divergências em indícios de culpa.

Nesse contexto, não surpreende que a obra de Freyre tenha sido estreitada à medida da necessidade nacional. Casa-Grande & Senzala, em 1933, bastou para virar de cabeça para baixo um ambiente marcado pelo pessimismo racista e pelo evolucionismo vulgar. Sua defesa da miscigenação e sua crítica às hierarquias raciais ganharam status de revelação libertadora. O livro se tornou marco da autoconsciência nacional — e, ao mesmo tempo, sua própria caricatura. Tudo o que veio depois passou a ser lido como apêndice, confirmação, extensão ilustrativa de uma tese inicial.

A operação é típica: quando uma sociedade encontra num livro uma imagem lisonjeira de si mesma, tende a congelá-lo naquele ponto. O que não reforça o mito é desacreditado, ignorado, esquecido. Uma carreira intelectual de meio século, com avanços metodológicos, ambições de reformular o conjunto das ciências humanas a partir de pressupostos ecológicos e planetários, é reduzida a um “primeiro capítulo brilhante”. É como se alguém respondesse à pergunta “o que é um carvalho?” apontando para uma bolota e afirmando que ali já está tudo. Tecnicamente, está; mas, na prática, é uma maneira de evitar lidar com a grandeza real da árvore.

A recusa em reconhecer essa grandeza não é específica do Brasil, embora assuma ali formas particularmente caricatas. A anedota de Ary Barroso, reduzindo Villa-Lobos a “grande jogador de bilhar”, condensa algo que Gray veria como sintoma de uma cultura que tem medo das alturas. Em vez de assumir que certos criadores estão numa escala comparável à dos grandes nomes universais, a reação dominante é nivelar tudo pela categoria amorfa de “gênio nacional”, onde cabem lado a lado um sociólogo monumental, um sambista talentoso e um jogador de futebol. Não se trata de justiça democrática, mas de alergia à desigualdade real de talentos.

Esse medo das alturas não é apenas ressentimento; é também mecanismo de autopreservação. Reconhecer que alguém como Freyre — com seu alcance eco-histórico, sua antecipação de métodos interdisciplinares, sua recusa de hierarquias deterministas — possa estar mais próximo de Weber do que de muitos teóricos europeus celebrados implicaria admitir que a periferia do sistema mundial produziu algo que não cabe confortavelmente nos esquemas de dependência e atraso. Isso é perigoso demais para uma elite que se acostumou a explicar tudo por meio da sua própria impotência histórica.

Um pensamento realmente universal é sempre inassimilável às identidades prontas. A obra madura de Freyre — com sua ênfase na unidade biológica da espécie humana, na unidade ecológica do planeta, na multiplicidade dos fatores que determinam a vida social — ultrapassa completamente os jogos de soma zero da política local. Nada lhe é indiferente: alimentação, climas, arquitetura, gestos, doenças, técnicas, afetos. Não se trata de “reduzir” o humano à biologia ou à economia, mas de tomar a sério a ideia de que o homem é um animal que produz cultura num cenário físico e histórico concreto. Em vez de hierarquizar causas, Freyre prefere articular perspectivas. É um projeto de ciência humana que resiste à tentação de transformar qualquer chave parcial em explicação total.

Esse tipo de ambição raramente é recompensado. É mais fácil canonizar um autor por um mérito isolado — seu estilo, sua coragem política, sua utilidade imediata — do que confrontar a extensão desconfortável de sua visão. Por isso a “homenagem cruel” é tão frequente: exaltar um traço parcial para ocultar a grandeza do todo. No caso de Freyre, celebra-se o pioneiro da miscigenação, o estilista brilhante de Casa-Grande & Senzala, o cronista da formação patriarcal — e deixa-se de lado o teórico que, silenciosamente, antecipou boa parte da sensibilidade ecológica e interdisciplinar que o século XX viria a valorizar sob outros nomes e bandeiras.

Há um ponto, porém, em que o olhar de John Gray se encontraria com o de quem ainda leva a sério a obra freyreana: a recusa em transformar esse quadro numa história de “traição” e degenerescência. Não há nenhum paraíso perdido a ser restaurado. Nem a era Vargas, com sua autoconfiança patriótica, nem a universidade marxista, com sua fé iluminista, representaram momentos de “sinceridade intelectual” traídos depois pela ideologia. Todas as fases foram ideológicas desde o início. Todas traduziram, à sua maneira, o mesmo impulso humano: usar ideias para dar sentido a uma existência contingente, frágil, sem fundamento.

Se há algo de singular em Freyre, não é que tenha escapado a esse destino, mas que tenha tentado, por vezes, olhá-lo de fora. Seu conceito de “intelectuário” é, nesse sentido, uma forma discreta de desconfiança permanente: um lembrete de que o próprio cientista social pode tornar-se funcionário de um mito, mesmo quando acredita estar desmontando mitos alheios. Que isso tenha se voltado contra ele, reduzindo-o a personagem de um roteiro alheio, não é uma injustiça excepcional. É a regra.

No fim, a grandeza de Freyre — como a de qualquer pensador que mereça esse nome — não está garantida pela gratidão de sua sociedade. Está antes na persistência incômoda de suas perguntas, que não se deixam encerrar em nenhuma liturgia patriótica, nem em nenhum catecismo revolucionário. Visto de uma distância que não reconhece fronteiras entre centro e periferia, esquerda e direita, progresso e atraso, ele aparece menos como um “clássico nacional” e mais como uma dessas figuras raras que ainda ousaram tratar o humano inteiro — no corpo, na terra, na história — sem reduzir nada ao conforto de uma explicação única.

Talvez seja isso que uma ciência humana digna do nome ainda pode oferecer: não um caminho de salvação, nem um manual de modernização, mas uma forma de atenção ao que somos, sem promessas. Em países como o Brasil, essa atenção costuma ser respondida com silêncio, caricatura ou uso instrumental. No entanto, a obra permanece, à espera de leitores que não procurem nela munição para suas guerras, mas ocasião de enxergar, por um instante, o homem e a terra sem mito de progresso e sem mito de ruína — apenas na sua difícil e, por isso mesmo, insuportável realidade.



A sucessão de desastres recentes — tornados devastando pequenas cidades brasileiras, tufões ceifando centenas de vidas nas Filipinas, populações inteiras desalojadas em poucas horas — não constitui um desvio da normalidade. Representa, ao contrário, a revelação tardia de uma verdade que a humanidade preferiu ocultar: a de que o clima do planeta nunca foi um objeto estável sob controle humano. A crise climática apenas expõe, de forma cada vez mais brutal, os limites invariáveis da espécie que acreditou poder negociar com a natureza como se esta fosse um parceiro racional.

A ficção científica, que por décadas serviu para projetar esperanças tecnológicas ou temores apocalípticos, tornou-se agora uma categoria porosa, quase redundante. Quando uma onda de calor pode matar milhões em um único país; quando cidades costeiras presumivelmente seguras se veem condenadas ao alagamento perpétuo; quando até a atmosfera se converte em ameaça, a imaginação literária deixa de ser fuga e passa a ser espelho. Não por acaso, escritores como Kim Stanley Robinson observam que a realidade parece ter absorvido integralmente a lógica da ficção especulativa. O extraordinário se tornou ordinário.

Contudo, a insistência em classificar tais obras como “ficção climática” revela outra das ilusões persistentes do nosso tempo: a crença de que é possível delimitar a crise ambiental a um nicho temático, como se ela fosse apenas mais um tópico entre outros. Na verdade, a erosão ecológica é o pano de fundo incontornável de toda narrativa humana contemporânea. Escrever sobre pessoas no século XXI — seus deslocamentos, seus conflitos, suas esperanças — é necessariamente escrever sobre um mundo em processo de transformação forçada, que reage a séculos de extração e desperdício.

Diante desse quadro, ressurgem as esperanças típicas do humanismo político: organismos supranacionais, conferências globais, compromissos multilaterais, todos sustentados pelo pressuposto de que os Estados podem superar seus próprios interesses e agir como se fossem guardiões de um futuro comum. Na ficção, pode-se conceber um “Ministério para o Futuro” — uma instância que represente as gerações por vir — mas no mundo real tal iniciativa esbarra na realidade mais banal das relações internacionais: a soberania não se dissolve pela força de um ideal moral.

As COPs oferecem um exemplo emblemático desse dilema. Elas funcionam como rituais contemporâneos de esperança e frustração: promessas grandiosas são feitas e, quase sempre, quebradas; planos são anunciados com solenidade para em seguida serem esquecidos; metas são estabelecidas para serem adiadas indefinidamente. Chamar tais compromissos de “casamento entre Estados” não é metáfora exagerada. São pactos selados em público e ignorados em privado, movidos mais por pressão simbólica do que por convicção. No fundo, exige-se dos países um tipo de altruísmo que nunca fez parte de sua lógica de funcionamento.

O erro do pensamento progressista — e aqui emerge o ponto central — é imaginar que a humanidade se moverá de modo coordenado e racional diante do perigo. A história desmente essa esperança. Civilizações frequentemente caminharam para o colapso acreditando possuir tempo, recursos ou engenhosidade suficientes para evitá-lo. Hoje, não é diferente. Os eventos extremos se multiplicam, mas a nossa resposta permanece fragmentada, hesitante, profundamente condicionada por rivalidades geopolíticas e pela fé deslocada de que “a tecnologia salvará”.

Ainda assim, não vivemos num romance apocalíptico. A espécie humana raramente desaparece com seus desastres — adapta-se, sobrevive, reorganiza-se. Mas essa resiliência não implica redenção. Implica apenas continuidade. O mundo que emerge da crise climática não será o paraíso sustentável prometido por décadas de retórica ambiental. Será um mundo mais desigual, mais tenso, mais vulnerável — e ainda assim inevitavelmente humano, com todas as suas contradições intactas.

A literatura que aborda esse processo não é um exercício de previsão, mas uma forma de lucidez. Ela nos lembra que as narrativas de salvação coletiva carregam, muitas vezes, a mesma dose de fantasia que as utopias tecnológicas que nos trouxeram até aqui. E talvez o papel mais importante da ficção — e da filosofia — seja justamente esse: dissipar as ilusões reconfortantes que nos impedem de enxergar o presente. O clima não está em crise; nós é que estamos.



Há um aspecto curioso — e, ao mesmo tempo, profundamente sintomático — na obra e na figura de Sophie Calle, essa artista que transforma lacunas em fetiches, ausências em fetos simbólicos e o vazio cotidiano em dramaturgia de si mesma. Não me refiro ao seu talento, que é inegável, mas ao modo como sua arte funciona como exemplo perfeito da confusão mental da modernidade tardia: a substituição progressiva da experiência direta pela mediação teatralizada.

A anedota narrada sobre a tal Mâkhi — a mulher incapaz de visitar o apartamento herdado e que convoca Calle como exploradora do mundo dos mortos — não é apenas um episódio pitoresco. Ela é o sintoma de um problema espiritual mais amplo: perdemos a coragem de olhar a realidade nos olhos e terceirizamos até mesmo o encontro com nossos fantasmas.

E é justamente nesse ponto que Calle aparece como heroína — não porque enfrenta as sombras, mas porque fabrica sombras melhores, mais fotogênicas, mais narráveis, mais digeríveis para uma cultura que precisa transformar tudo em performance para suportar o peso do real.

A artista como deputada do mundo interior

Quando Calle aceita o pedido de Mâkhi e visita o apartamento das irmãs mortas, ela assume um posto que já não pertence aos artistas, mas que há séculos era reservado aos sacerdotes, filósofos, eremitas e diretores espirituais: o de mediadores do invisível.

Mas ela o faz ao estilo contemporâneo: sem metafísica, sem escatologia, sem transcendência — apenas com uma câmera e uma noção performática do “eu”.

O mundo moderno reduziu a experiência espiritual a uma estética da sensibilidade.

Não é à toa que o livro se chama Histórias reais: nada é mais fictício do que a obsessão moderna pela realidade. Quando alguém precisa advertir que algo é “real”, já não estamos no reino do real, mas no reino do marketing. É o mesmo que colocar um aviso “não mergulhe” para que todos sintam aquela coceira infantil de pular na água proibida.

A própria palavra “real” tornou-se isca literária, não garantia ontológica.

O culto contemporâneo da carta perdida

As cartas mencionadas por Calle — encomendas sentimentais, mensagens adulteradas, bilhetes deslocados da intenção original — são relíquias de um mundo que perdeu o sentido das palavras.

A carta sempre foi uma extensão da alma, um risco assumido: você escreve para alguém e confia sua interioridade ao julgamento desse outro. A carta é uma flecha lançada na direção do destino moral.

Calle, porém, transforma a carta no oposto disso: não uma oferta da alma, mas uma fabricação da alma; não um risco, mas um artesanato; não uma confissão, mas um adereço.

Ela encomenda o amor como quem encomenda um objeto — porque o amor, tal como é vivido na sociedade do espetáculo, não passa de um artefato emocional de prateleira.

E quando encontra a carta destinada a “H.” e substitui a inicial por “S.”, ela realiza, talvez sem perceber, o rito máximo da modernidade: o sujeito usurpa o lugar da realidade para colocar a si mesmo como centro gravitacional do sentido.

A ficção não está mais no texto: está na consciência de quem o manipula.

A pergunta mais terrível do século

No meio de um questionário médico ridiculamente prolixo, surge a pergunta: “Você é uma pessoa triste?”

Essa é a única pergunta sincera, e por isso mesmo é a única literária, a única humana, a única que corta o verniz performático que nos cobre desde o nascimento até a morte.

Toda a arte de Calle gira em torno disso: a tentativa de responder à tristeza essencial com ruídos, com imagens, com performances, com uma engenharia estética que tenta substituir o real por seu simulacro digestivo.

O teatro do vazio

No final, o que sobra?
Uma mulher adulta recordando o trauma infantil de ser deixada de lado por outras crianças que corriam e cochichavam — símbolo perfeito da nossa civilização: todos querem ser vistos, ninguém quer ver; todos querem ser seguidos, ninguém quer seguir.

O primeiro grito de Calle — “me espera!” — ecoa ainda hoje: é o grito de uma sociedade inteira pedindo atenção, validação e plateia.

Mas a verdadeira tragédia não é sermos invisíveis.
A verdadeira tragédia é que, para sermos vistos, aceitamos nos tornar personagens.

E assim caminhamos, geração após geração, cada vez mais longe da realidade, cada vez mais perto do abismo luminoso das telas, dos stories, das narrativas inventadas, dos “reais” tão falsos quanto ficções.

Sophie Calle apenas revela, com elegância e estilo, aquilo que se tornou o dogma supremo do mundo contemporâneo:

Se o real não nos satisfaz, encenemos algo melhor.

E, como sempre, pagaremos o preço: o nada retorna, o ninguém retorna, o fantasma retorna — mas agora domesticado, fotografado, estetizado.

Um fantasma de boutique.


I. O vazio como herança moderna

“Falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” Há algo de terrivelmente familiar nessa confissão de Bento Santiago, algo que ecoa nas formas contemporâneas de angústia e autodefinição. Não é apenas a constatação de uma perda interior, mas a descoberta de que a própria identidade é uma construção frágil, instável, e que a tentativa de restaurá-la — pela memória, pela narrativa, pela culpa — é, em última instância, uma forma de autoengano.

Na frase de Machado, o sujeito não lamenta apenas a ausência de algo que o completaria. Ele descobre, horrorizado, que o próprio “eu” é a ausência. Bentinho, como tantos herdeiros do individualismo moderno, percebe que o projeto de uma identidade coerente é uma ficção que não resiste à passagem do tempo. O “eu” a que ele tenta retornar é uma ruína, e o esforço de reconstruí-lo — casa, lembranças, justificativas — só torna mais evidente o abismo.

Esse abismo é o mesmo que define o homem moderno desde Montaigne: a consciência da descontinuidade. O homem que tenta narrar-se descobre que é feito de fragmentos. O medo do narrador machadiano é o medo do filósofo e do cidadão secular — o medo de olhar para dentro e não encontrar ninguém.

II. O tribunal do eu

Bentinho reconstrói sua vida como quem tenta montar um tribunal: ele é juiz, réu, vítima e carrasco. Mas o que está em julgamento não é Capitu — é a própria possibilidade de verdade. Ao transformar sua história em processo, o narrador abdica da inocência da experiência. Ele não quer lembrar; quer provar. E nesse gesto se revela a doença moral de uma época que confunde consciência com justificativa.

Toda confissão é uma forma de poder. Quando Bentinho fala ao leitor, ele busca absolvição; quer que o leitor acredite em sua versão e, ao fazê-lo, confirme sua existência. Mas o que transparece é o oposto: quanto mais ele tenta narrar, mais se dissolve. O homem moderno vive desse mesmo paradoxo — acredita que pode curar a dor da separação interior pela narrativa, quando a narrativa é precisamente o sintoma da separação.

“Falto eu mesmo” é, portanto, o lamento de quem substituiu a fé pela introspecção. No lugar de um Deus que julga, resta o olhar do outro — o leitor, o público, a sociedade — diante do qual o sujeito tenta justificar-se. Mas, sem transcendência, o tribunal torna-se um espelho côncavo: o juiz e o réu se confundem, e o veredito nunca chega.

III. A amizade como espelho e ameaça

Há algo profundamente humano — e trágico — na leitura que aproxima Dom Casmurro de O Conto de Inverno. Ambos expõem o ciúme não apenas como emoção, mas como estrutura ontológica: a impossibilidade de amar sem desejar o olhar do outro. O bromance entre Bentinho e Escobar, tão cuidadosamente insinuado, é o ponto cego do narrador. Ele teme em Escobar o que mais deseja: a confirmação de si.

A amizade masculina, aqui, é uma relação de espelhos. Bentinho admira Escobar, ama Capitu e teme a ligação entre ambos porque intui — sem compreender — que tudo o que sente por eles é uma só coisa: o desejo de ser reconhecido. A mulher e o amigo tornam-se faces do mesmo enigma. O ciúme é o preço pago por quem confunde o amor com a necessidade de identidade.

Nas sociedades antigas, a amizade entre homens podia ser o espaço da virtude compartilhada. Nas modernas, tornou-se uma ameaça à estabilidade do eu. O medo de Bentinho é o medo do homem que não suporta o reflexo do outro dentro de si.

IV. A ilusão da memória

A tentativa de reconstruir o passado — seja por meio da casa, da escrita ou da confissão — é a forma mais elegante da negação. O passado não retorna porque não há sujeito que o convoque inteiro. O narrador de Machado é como um fantasma que tenta explicar sua morte. Ele vive na fronteira entre o que foi e o que poderia ter sido, e cada lembrança é uma invenção a serviço da culpa.

Mas o mais perturbador é que a culpa, em si, é o que o mantém vivo. Ao acusar Capitu, Bentinho encontra uma narrativa que o absolve de encarar a própria vacuidade. O ciúme é uma distração metafísica. Ele substitui o reconhecimento da falência interior por uma explicação moral: “fui traído”. Assim, preserva a ilusão de que houve, um dia, um “eu” inteiro que poderia ter sido feliz.

Na verdade, o que falta a Bentinho não é Capitu, mas a própria capacidade de reconciliar-se com o tempo. Ele se recusa a admitir que o passado é irrecuperável — que a vida, uma vez vivida, não pode ser revisada sem se perder.

V. A moral da lacuna

A frase “Falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” é, paradoxalmente, uma epifania ética. O reconhecimento da falta é o primeiro passo da liberdade. Enquanto Bentinho tenta negar a lacuna, ele permanece prisioneiro do ressentimento. O caminho da compaixão — aquele que o autor do ensaio original vislumbra ao comparar Bentinho a Leontes — é o de quem aceita a ausência como condição da existência.

Machado compreendeu o que os filósofos morais raramente entendem: que a vida não se constrói sobre verdades, mas sobre reconciliações imperfeitas. O homem maduro não é aquele que descobre quem é, mas o que perdeu — e ainda assim continua a viver.

No fundo, o romance é uma parábola sobre o perigo da autoconsciência. A obsessão com a coerência, a necessidade de pureza, a ânsia por uma narrativa total — tudo isso é a própria forma moderna da loucura. A sabedoria está em suportar o fragmento, em aceitar que o eu é uma colagem de papéis contraditórios.

VI. O medo e a misericórdia

O ensaísta brasileiro teme chegar à velhice e ter de narrar sua vida como Bentinho, sem misericórdia. Esse medo é legítimo: ele é o medo da modernidade tardia, em que todos somos instados a justificar-nos diante de uma plateia invisível. Mas a misericórdia que falta a Bentinho — e talvez a nós — não é apenas pelos outros; é, sobretudo, pela própria falibilidade.

Ser moderno é viver num mundo sem tribunal divino, mas com uma consciência implacável. A única absolvição possível é a da ternura: reconhecer que a vida não se explica, apenas se recorda com compaixão.

VII. Epílogo: o silêncio do eu

O verdadeiro horror de Dom Casmurro não está no adultério nem na dúvida, mas no silêncio final: “Falto eu mesmo.” Essa é a frase que resume a condição humana depois da morte de Deus e da dissolução do sujeito. O romance, que começa como ciúme e termina como confissão, é na verdade uma meditação sobre o desaparecimento do eu no espelho da memória.

Bentinho queria provar uma verdade; Machado nos mostrou uma ausência. E é essa ausência — esse espaço vazio entre o que fomos e o que contamos ser — que constitui, paradoxalmente, a nossa única realidade.

A lacuna é tudo. O resto é literatura.



Michel Alcoforado
, em Coisa de rico, escreveu, sem talvez o perceber, sobre a condição humana em uma era que perdeu qualquer referência ao limite. Seu retrato da elite é um espelho ampliado de uma sociedade que acredita poder consumir seu caminho até a transcendência. O antropólogo observa os ricos brasileiros como quem estuda um novo tipo de animal moral: criaturas movidas não por necessidade, mas por uma angústia de pertencimento que nunca se sacia.

O livro revela o paradoxo central da modernidade tardia: quanto mais livres nos imaginamos, mais escravos nos tornamos — de objetos, de status, de narrativas. O luxo, no Brasil como em qualquer outro lugar, é apenas a forma mais visível dessa servidão voluntária. Não é o dinheiro que move a elite, mas o desejo de provar — a si mesma e aos outros — que pertence a um mundo inexistente. Em um país sem aristocracia, a riqueza não legitima: apenas denuncia o desespero por significado.

Ao se infiltrar nas casas e jantares dos ricos, Alcoforado descreve uma economia simbólica que já não tem nada a ver com sobrevivência material. A competição por bolsas medonhas, viagens redundantes e gestos de falsa sofisticação não é sobre prazer — é sobre identidade. O que está em jogo é a tentativa de escapar da banalidade da vida comum, e de inventar um sentido onde o sentido se evaporou.

Mas, como todo hedonismo sistematizado, essa busca é autodestrutiva. O antropólogo mostra, com ironia, que nenhum dos “ricos” se reconhece como tal. O outro é sempre o verdadeiro rico — mais seguro, mais legítimo, mais “de dentro”. É a lógica do capitalismo emocional: o desejo de possuir é inseparável do medo de não ser o bastante. Por isso, o luxo não traz repouso; traz ansiedade. A riqueza não gera estabilidade; gera vulnerabilidade. É o mesmo impulso que move o novo-rico brasileiro e o executivo de Wall Street: uma fuga constante daquilo que são.

Alcoforado, talvez sem a intenção filosófica, toca no tema que define nosso tempo — a tentativa de substituir a natureza humana por engenharia social e estética. A elite brasileira acredita que pode redesenhar-se pela aparência, pelo consumo e pelos códigos de “bom gosto”. É a mesma ilusão iluminista que transformou a promessa de progresso em uma corrida pelo vazio. No fundo, o luxo é apenas mais uma versão do mito moderno da salvação — a crença de que podemos transcender nossa condição por meio de escolhas de mercado.

O que Coisa de rico revela, portanto, é menos sobre os ricos do que sobre o projeto moderno em ruínas. O antropólogo não descreve aberrações isoladas, mas sintomas de uma cultura que perdeu o senso do trágico. O homem moderno — com ou sem dinheiro — já não sabe morrer, tampouco viver. Substituiu o destino pela autoexpressão e a comunidade pela exibição.

Em última análise, os milionários de Alcoforado são apenas versões caricaturais do ser humano contemporâneo: criaturas errantes em busca de significado em um mundo que já não o oferece. Eles acreditam possuir o controle de suas vidas, mas são movidos por forças — tecnológicas, psicológicas, simbólicas — que mal compreendem.

O livro é divertido, sim, mas também melancólico. Pois mostra que, mesmo na ostentação mais ruidosa, persiste o silêncio fundamental de uma espécie que já não sabe o que quer.

Os ricos brasileiros vivem cercados de ouro, mas padecem da mesma pobreza espiritual que todos nós — a pobreza de sentido em um mundo que fez da liberdade um produto e do desejo, uma prisão.


José Fagner. Theme by STS.