A concessão do Nobel de Literatura a László Krasznahorkai confirma algo que há muito se sabe, mas que o nosso tempo insiste em esquecer: que a arte mais duradoura nasce não da esperança, mas da exaustão. Num mundo que se pretende transparente e acelerado, Krasznahorkai escreve como se ainda fosse possível demorar-se no desastre. Seus romances são longos, densos e circulares não por capricho estilístico, mas porque o próprio mundo que descreve não tem saída. O tempo ali não avança; dissolve-se, como o barro das aldeias húngaras que ele insiste em retratar.
A literatura de Krasznahorkai pertence à linhagem dos que compreendem que o progresso é apenas uma narrativa — e uma narrativa particularmente cruel. Kafka, Brodsky, Herta Müller: todos sabiam que a promessa de redenção política é apenas a forma mais elegante da servidão. Krasznahorkai acrescenta a isso um niilismo pastoral: seus personagens vivem entre o entulho das ideologias, mas continuam a acreditar em milagres menores, em rumores de salvação. São cínicos e supersticiosos, ressentidos e crédulos. É essa contradição que os mantém vivos — e que, em última instância, define a própria condição humana.
A baleia embalsamada que atravessa A Melancolia da Resistência poderia muito bem figurar como o emblema do século XX: uma relíquia morta exposta como espetáculo. A decomposição do poder e a persistência do fascínio. Krasznahorkai não descreve a queda de um regime, mas a fascinação que essa queda ainda desperta — como se o colapso fosse, ele próprio, um consolo. O autoritarismo, em sua prosa, é uma força orgânica: retorna sempre, como um rumor do corpo ou uma doença antiga.
Essa percepção — de que o mal político é inseparável da natureza humana — aproxima-o da filosofia sombria de Schopenhauer e da antropologia moral que John Gray descreveu em Straw Dogs: a ideia de que não há progresso ético, apenas variações do mesmo impulso de domínio e autodestruição. Krasznahorkai é, nesse sentido, o cronista mais fiel de uma Europa pós-histórica, em que até o apocalipse se tornou um ritual burocrático.
A segunda fase de sua obra — marcada por viagens à Ásia — não é uma fuga, mas uma confirmação dessa visão. O Oriente, para ele, não é promessa de equilíbrio, e sim outro tipo de ruína: uma ruína espiritual, em que a transcendência já se converteu em curiosidade turística. Em Seiobo estava lá embaixo, o sagrado não redime; apenas sobrevive como técnica. A arte, reduzida à repetição disciplinada, torna-se o último refúgio da verdade — não porque revele algo, mas porque se recusa a significar demais.
Krasznahorkai parece compreender, como poucos, que o verdadeiro gesto de resistência é continuar descrevendo o mundo quando já não há nada a salvar. Sua prosa não oferece saída; oferece apenas o peso do tempo. E, ao fazê-lo, recorda-nos de que o colapso é o estado natural das coisas. A civilização, com suas ilusões de estabilidade, é apenas o intervalo entre dois desastres.
Talvez seja essa a razão profunda de seu Nobel — e também sua ironia: premiar aquele que descreve, com precisão quase litúrgica, a futilidade de todas as premiações. Em Krasznahorkai, o mundo não se corrige. Apenas gira, lentamente, sobre o próprio cansaço.
A arte depois da esperança
Para John Gray, a modernidade é uma religião disfarçada: substituímos Deus pelo mito do progresso e chamamos de “humanismo” a velha crença de que o homem é o centro da criação. Krasznahorkai escreve como quem já viu essa fé apodrecer. Em suas narrativas, o ser humano não é o protagonista da história, mas um acidente que se repete — um erro cósmico que insiste em buscar sentido onde só há entropia.
Seus personagens movem-se entre ruínas materiais e espirituais com a mesma resignação com que uma marionete repete seus gestos. Não acreditam em redenção, mas tampouco conseguem desistir dela. É essa tensão — entre o desejo de sentido e a impossibilidade de alcançá-lo — que dá às suas frases o ritmo hipnótico e claustrofóbico de uma ladainha. Krasznahorkai não escreve para iluminar, mas para mostrar que a luz é, às vezes, apenas outra forma de cegueira.
John Gray diria que essa é a forma mais honesta de arte: uma arte sem esperança. Porque toda esperança, afinal, é uma forma de arrogância — a recusa em aceitar que o mundo é indiferente aos nossos desejos. Krasznahorkai, como Gray, não oferece consolo algum. Ambos descrevem um universo em que a busca por sentido é apenas mais uma narrativa humana — bela, talvez, mas essencialmente fútil.
Quando Krasznahorkai viaja ao Oriente em busca do “autêntico”, o que encontra é a constatação de que nada é mais universal do que a perda. As tradições que o fascinam — o budismo, o taoismo, o xintoísmo — aparecem em sua obra não como alternativas ao desespero ocidental, mas como variantes dele. A serenidade oriental não é, em última instância, diferente da melancolia europeia; é apenas uma forma mais elegante de aceitar o colapso.
No fundo, tanto Gray quanto Krasznahorkai compreendem que a civilização é uma tentativa desesperada de domesticar o caos. A história humana não é uma linha ascendente, mas um ciclo de ilusões renovadas. Cada império, cada sistema político, cada ideal de progresso é apenas um novo disfarce para o mesmo medo: o de que o mundo não nos pertence. Krasznahorkai, ao narrar aldeias decadentes e cidades sem futuro, revela que o colapso não é um evento extraordinário, mas o estado contínuo da realidade.
Seus romances — com suas frases intermináveis e sua respiração irregular — parecem escritos por alguém que tenta resistir à própria extinção. Há, em sua prosa, o eco de uma humanidade que fala sozinha, em voz baixa, já sem saber se alguém ainda escuta. É o mesmo tom que atravessa os ensaios de Gray: o murmúrio de quem reconhece que a lucidez é uma forma de solidão.
No fim, o que há em Krasznahorkai é uma ética da desistência. Não a desistência banal, mas aquela que reconhece que continuar é inútil — e, mesmo assim, continua. Seus personagens, como o próprio autor, vivem entre o absurdo e a persistência. E talvez seja essa, afinal, a única forma de liberdade que resta: a de permanecer lúcido em meio à ruína.
O paradoxo da consagração
O Nobel de Literatura é, por excelência, uma celebração da esperança. Premia-se não apenas uma obra, mas a crença de que a arte ainda pode iluminar o mundo. Krasznahorkai, porém, representa o contrário disso: um autor para quem o mundo não pode — e talvez não deva — ser salvo. Sua consagração é, portanto, uma ironia metafísica. É como se o comitê sueco tivesse concedido o prêmio não ao triunfo da arte, mas à sua ruína.
John Gray observaria, com o seu ceticismo habitual, que o destino de toda civilização é transformar em monumento aquilo que um dia foi subversão. Assim acontece com Krasznahorkai: o escritor que descreveu o fim das utopias é agora erigido como símbolo de uma nova. O prêmio não desmente sua visão trágica do mundo — apenas a confirma. Quando o desespero se torna respeitável, é sinal de que já foi assimilado.
Mas talvez haja uma forma mais profunda de compreender essa contradição. O reconhecimento de Krasznahorkai pode ser visto não como uma celebração da esperança, mas como um tributo ao desamparo. Num tempo em que tudo é reduzido a mensagens de otimismo e autopromoção, sua escrita resiste à linguagem do conforto. Lê-lo é ser lembrado de que a beleza ainda é possível mesmo quando toda redenção falhou — talvez apenas então.
Há uma nobreza discreta em aceitar que a arte não muda o mundo, mas o contempla enquanto ele se desfaz. O próprio Gray, ao escrever sobre o fracasso inevitável das ideias humanas, não o faz com desprezo, mas com uma espécie de ternura fatalista. Krasznahorkai pertence a essa mesma linhagem de espíritos que amam a humanidade justamente porque não esperam nada dela.
No final, o prêmio, como toda glória humana, é apenas uma pequena chama tremulando num vasto deserto de silêncio. Krasznahorkai sabe disso — e é por isso que merece o Nobel. Não por prometer sentido, mas por escrever como quem já compreendeu que o sentido é apenas um outro nome para o medo da morte. Sua literatura é uma oferenda feita ao vazio: uma lembrança de que o colapso não é o contrário da vida, mas sua forma mais honesta.
Como a neurodivergência me ensinou que empatia demais pode ser uma forma de implorar por aceitação
Tenho quarenta e seis anos e ainda tropeço em conversas como quem erra o compasso de uma música simples. A vida social, para mim, é uma coreografia cujos passos nunca aprendi. É o tipo de coisa que a neurodivergência cobra com juros: você entende as palavras, mas não o subtexto; reconhece o sorriso, mas não o código que o sustenta.
Durante muito tempo, acreditei que podia compensar essa falha com boa vontade. Tornar-me o tipo de pessoa que ajuda, que se doa, que resolve o que não é seu. Eu comprava as dores dos outros na esperança de receber, em troca, um bilhete de entrada no mundo das relações humanas. Ingenuidade cara. Descobri que empatia demais é, muitas vezes, uma forma de implorar por aceitação.
No convívio profissional, o problema ganha outra escala. As instituições — esses pequenos planetas orbitando o ego humano — funcionam melhor quando alguém acredita que tem poder. Nietzsche dizia que, onde há vida, há vontade de poder.
Num tempo já distante, trabalhei com uma professora que chefiava a área em que eu lecionava. Ela transformou o trabalho em campo de batalha. Impedia-me de assumir disciplinas sob sua coordenação e, meses depois, as oferecia em cursos de férias. Nada pessoal, claro — apenas política interna, o nome elegante da mesquinhez. Quando deixou a instituição, continuou agindo à distância, como um fantasma administrativo: usava ex-orientandos para influenciar decisões e manter viva sua presença.
Um dia, num gesto de boa intenção, alertei os alunos sobre o risco de perseguições veladas. Fui acusado de “espalhar o terror”. Descobri, da pior forma, que em ambientes hierárquicos quem tenta proteger os outros vira rapidamente o vilão da história. Perguntei-me o que, afinal, eu estava fazendo. Narcisismo? Carência? Alguma necessidade infantil de ser o herói do departamento?
Freud teria se divertido com o caso. Milan Kundera, talvez, dissesse que nada é mais pesado que a compaixão — nem mesmo o próprio sofrimento. No fundo, eu só queria pertencer. E pertencer, como dizia Clarice Lispector, é viver sem explicar. Mas o neurodivergente é aquele que precisa explicar-se o tempo todo: traduzir a própria linguagem, justificar gestos, decifrar expressões. A sociabilidade é um teatro em que o papel de “ator natural” nunca me coube.
Kafka entendeu isso muito antes de qualquer manual de psicologia: seus personagens vivem perdidos em sistemas que não compreendem, tentando decifrar regras que mudam a cada cena. É a mesma sensação que tenho quando tento “me enturmar” — um verbo que, aos quarenta e seis anos, soa cada vez mais absurdo.
Com o tempo, aprendi a reduzir danos. Parei de tentar consertar o mundo e comecei a reparar em mim. Não sou herói de ninguém — mal dou conta do meu próprio enredo. Ainda assim, compreender o jogo social continua sendo tarefa impossível. As relações humanas parecem uma partida de xadrez em que ninguém explica as regras e, pior, todos fingem que você é quem está distraído.
Talvez Clarice tenha razão: compreender é sempre um erro; só o sentir é verdadeiro. E o que sinto hoje é menos culpa e mais serenidade. Não pertenço, é verdade. Mas já não quero tanto. O pertencimento tem um custo alto demais — custa silêncio, disfarce, pequenas traições de si mesmo.
Camus escreveu que, no meio do inverno, descobriu haver em si um verão invencível. Gosto dessa imagem. A neurodivergência, vista de perto, é esse verão fora de hora: uma resistência silenciosa num mundo que exige uniformidade. Talvez eu pertença, afinal — não a um grupo ou instituição, mas a essa zona de fronteira entre o desconforto e a lucidez.
E se é verdade que cada um carrega o inferno que merece, o meu é de convivência. Um inferno educado, cheio de reuniões, sorrisos protocolares e boas intenções. Ainda assim, sobrevivo. Compreendendo o mínimo e sentindo o bastante.
Durante muito tempo, acreditei que podia compensar essa falha com boa vontade. Tornar-me o tipo de pessoa que ajuda, que se doa, que resolve o que não é seu. Eu comprava as dores dos outros na esperança de receber, em troca, um bilhete de entrada no mundo das relações humanas. Ingenuidade cara. Descobri que empatia demais é, muitas vezes, uma forma de implorar por aceitação.
No convívio profissional, o problema ganha outra escala. As instituições — esses pequenos planetas orbitando o ego humano — funcionam melhor quando alguém acredita que tem poder. Nietzsche dizia que, onde há vida, há vontade de poder.
Num tempo já distante, trabalhei com uma professora que chefiava a área em que eu lecionava. Ela transformou o trabalho em campo de batalha. Impedia-me de assumir disciplinas sob sua coordenação e, meses depois, as oferecia em cursos de férias. Nada pessoal, claro — apenas política interna, o nome elegante da mesquinhez. Quando deixou a instituição, continuou agindo à distância, como um fantasma administrativo: usava ex-orientandos para influenciar decisões e manter viva sua presença.
Um dia, num gesto de boa intenção, alertei os alunos sobre o risco de perseguições veladas. Fui acusado de “espalhar o terror”. Descobri, da pior forma, que em ambientes hierárquicos quem tenta proteger os outros vira rapidamente o vilão da história. Perguntei-me o que, afinal, eu estava fazendo. Narcisismo? Carência? Alguma necessidade infantil de ser o herói do departamento?
Freud teria se divertido com o caso. Milan Kundera, talvez, dissesse que nada é mais pesado que a compaixão — nem mesmo o próprio sofrimento. No fundo, eu só queria pertencer. E pertencer, como dizia Clarice Lispector, é viver sem explicar. Mas o neurodivergente é aquele que precisa explicar-se o tempo todo: traduzir a própria linguagem, justificar gestos, decifrar expressões. A sociabilidade é um teatro em que o papel de “ator natural” nunca me coube.
Kafka entendeu isso muito antes de qualquer manual de psicologia: seus personagens vivem perdidos em sistemas que não compreendem, tentando decifrar regras que mudam a cada cena. É a mesma sensação que tenho quando tento “me enturmar” — um verbo que, aos quarenta e seis anos, soa cada vez mais absurdo.
Com o tempo, aprendi a reduzir danos. Parei de tentar consertar o mundo e comecei a reparar em mim. Não sou herói de ninguém — mal dou conta do meu próprio enredo. Ainda assim, compreender o jogo social continua sendo tarefa impossível. As relações humanas parecem uma partida de xadrez em que ninguém explica as regras e, pior, todos fingem que você é quem está distraído.
Talvez Clarice tenha razão: compreender é sempre um erro; só o sentir é verdadeiro. E o que sinto hoje é menos culpa e mais serenidade. Não pertenço, é verdade. Mas já não quero tanto. O pertencimento tem um custo alto demais — custa silêncio, disfarce, pequenas traições de si mesmo.
Camus escreveu que, no meio do inverno, descobriu haver em si um verão invencível. Gosto dessa imagem. A neurodivergência, vista de perto, é esse verão fora de hora: uma resistência silenciosa num mundo que exige uniformidade. Talvez eu pertença, afinal — não a um grupo ou instituição, mas a essa zona de fronteira entre o desconforto e a lucidez.
E se é verdade que cada um carrega o inferno que merece, o meu é de convivência. Um inferno educado, cheio de reuniões, sorrisos protocolares e boas intenções. Ainda assim, sobrevivo. Compreendendo o mínimo e sentindo o bastante.
Foto tirada por: Eduardo Montes-Bradley
Em tempos em que a crença no progresso substituiu a fé religiosa, as mensagens se tornaram os novos sermões. A política contemporânea, seja a dos governos ou a dos escritores, é guiada por um desejo quase espiritual de redenção. O jornalista e ensaísta Ta-Nehisi Coates pertence, de modo inconfundível, a essa linhagem moderna de moralistas seculares — aqueles que procuram restaurar a consciência do mundo pela força da linguagem.
Em A Mensagem, Coates propõe um projeto nobre: devolver ao ato de contar histórias o poder de iluminar o que a história oficial apaga. Mas o que ele chama de “mensagem” é, na verdade, o antigo fardo do escritor moderno: falar em nome da humanidade, num tempo em que a humanidade é apenas uma ficção moral.
Coates viaja — ao Senegal, ao sul dos Estados Unidos, à Palestina — em busca de perguntas que o mundo não faz. Ele o faz com a fé de quem acredita que, pela palavra justa, é possível romper o silêncio das estruturas e das narrativas dominantes. Essa fé é admirável, mas também sintomática. Pois, na verdade, nunca deixamos de ser dominados por narrativas — apenas substituímos umas por outras. A ilusão de escapar do “mainstream” é, muitas vezes, apenas a criação de um novo centro.
O impulso de Coates lembra o de George Orwell, cuja frase abre o livro: “acabamos, por responsabilidade com nosso passado, presente e futuro, nos tornando todos panfletários.” Orwell via a escrita política como um dever moral, mas também como um exercício de desespero. Ele sabia que o escritor engajado fala não porque acredita que pode mudar o mundo, mas porque sabe que o mundo não mudará sem que alguém o acuse. Coates, ao contrário, ainda acredita que a acusação pode purificar — que a linguagem pode transformar o real.
Mas o real raramente se dobra à consciência moral. A história não tem direção, apenas repetições com novas máscaras. A escravidão, a opressão, o império — tudo isso muda de nome, não de natureza. As viagens de Coates, como as peregrinações religiosas de séculos anteriores, mostram um homem à procura de sentido em ruínas sucessivas. Ele encontra ecos de dor e de injustiça, mas também descobre, talvez sem o dizer, que não há reconciliação possível entre o ideal e a condição humana.
O que A Mensagem oferece, portanto, não é uma saída, mas um testemunho. E nisso reside sua verdadeira força. Coates quer iluminar, mas a luz que projeta é a de uma lanterna num campo devastado — revela, não reconstrói. Acredita que o ato de contar novas histórias pode curar o que as antigas feriram, mas talvez seja mais honesto admitir que toda narrativa é também uma forma de cegueira.
Quando Coates diz que o jornalismo não é um luxo, ele repete, em linguagem secular, o antigo credo dos profetas: o da palavra como dever. Mas o que o diferencia não é o conteúdo da mensagem — é a consciência do seu limite. Ao reconhecer que “os sistemas que combatemos são sistemas de covardia”, ele revela algo que vai além da política: a recusa do humano em enfrentar sua própria natureza.
Os modernos acreditam que, com suficiente luz, dissiparão as trevas. Esquecem que o homem é ele mesmo o portador da sombra. Coates, ao final, parece perceber isso — e, nesse reconhecimento, aproxima-se do trágico que tanto falta à moral progressista contemporânea.
Seu livro é, sem o saber, uma meditação sobre o fracasso da mensagem. Pois a mensagem mais verdadeira é aquela que não pretende salvar, mas compreender. O escritor que insiste em mudar o mundo talvez acabe apenas repetindo seus enganos; o que o observa em silêncio, esse sim, pode enfim descrevê-lo.
A escrita de Coates, nesse sentido, é uma arte da lucidez melancólica — e por isso mesmo, profundamente humana. O que ela nos ensina não é a esperança, mas a coragem de viver sem ela.
Ao longo da vida, todo ser humano está cercado por forças que o convidam a esquecer de si. Algumas são brandas e sedutoras — prometem conforto, estabilidade, uma identidade fixa. Outras, mais discretas, atuam em silêncio: dissolvem convicções, questionam o que parecia evidente, lembram que a consciência é sempre um território instável.
É fácil entregar-se às primeiras. Elas aliviam a fadiga de pensar, oferecem um manual de respostas prontas, ensinam a viver sem perguntas. As segundas, porém, são as que realmente educam. São incômodas, porque retiram o chão sob os pés; e, no entanto, é nelas que se descobre a possibilidade de uma vida mais lúcida — não mais feliz, talvez, mas mais verdadeira.
A civilização moderna tenta nos convencer de que a consciência pode ser domesticada. Multiplicam-se as técnicas para administrar o tempo, controlar as emoções, gerir o próprio “eu” como se fosse uma empresa. A promessa é sedutora: eliminar o conflito, reduzir a incerteza, transformar o viver em eficiência. Mas o preço é alto. Onde tudo é otimização, a alma se torna um apêndice descartável.
Ser humano, no entanto, é precisamente o oposto da eficiência. É ser contraditório, vacilante, incapaz de coincidir inteiramente consigo. É suportar o desconforto de não saber, de não dominar o próprio destino, de sentir que há algo em nós que nunca se deixa organizar.
Os antigos sabiam disso. Não buscavam a imortalidade como um prolongamento da vida, mas como uma compreensão mais profunda do limite. Sabiam que há uma forma de eternidade no instante em que se aceita o que não se pode mudar. Hoje, ao contrário, a imortalidade é tratada como um projeto técnico — mais um produto no catálogo das promessas humanas. Substituímos o mistério pela administração do corpo, e a sabedoria pelo cálculo.
O resultado é uma espécie de pobreza espiritual mascarada de progresso. Sabemos cada vez mais sobre o funcionamento das coisas e cada vez menos sobre o sentido de estar vivos. A ciência amplia horizontes, mas a consciência se estreita: acreditamos ter conquistado o mundo, quando, na verdade, apenas o tornamos mais manejável.
Há, porém, uma resistência silenciosa. Ela nasce nas margens: em quem recusa o ritmo acelerado das novidades, em quem ainda lê devagar, em quem aceita o tédio como espaço fértil. Esses poucos — poetas, pensadores, ou simplesmente pessoas cansadas de obedecer ao impulso de consumir — sustentam uma fidelidade discreta à experiência humana. Sabem que o essencial se descobre no intervalo entre o fazer e o compreender, entre o dizer e o calar.
Aprender a permanecer humano, hoje, exige uma espécie de ascese às avessas: não acumular, mas desaprender; não dominar, mas escutar; não impor sentido, mas deixar que as coisas o revelem. Exige ainda o reconhecimento de que a fragilidade não é falha, mas condição.
E talvez seja esse o ponto: não há educação mais profunda do que aceitar a própria precariedade. Tudo o que é autêntico nasce do reconhecimento do limite — da morte, do tempo, da imperfeição. Quem tenta expulsá-los acaba por fabricar simulacros de vida: existências artificiais, sem peso, sem história.
Não é o sofrimento que dignifica o homem, mas o modo como ele o acolhe. Não é a certeza que dá força, mas a capacidade de suportar o incerto. E não é a busca por permanência que salva, mas a consciência de que tudo passa — e, ainda assim, vale a pena viver com atenção.
Há um instante em que cada um deve decidir se continuará perseguindo ilusões ou se aceitará, finalmente, viver sem garantias. Essa escolha define o grau de humanidade que somos capazes de sustentar.
O mundo continuará a oferecer distrações, teorias, ideologias, sistemas de salvação. Mas a única sabedoria que não envelhece é a de quem, diante de tudo isso, conserva o olhar limpo e o coração atento.
Lembre-se, permanecer humano não é um estado, é um exercício contínuo. É resistir à tentação de transformar a vida em mecanismo e aceitar que, por trás de toda tentativa de controle, há sempre o medo do vazio.
Ser humano é viver em paz com esse vazio — e aprender, nele, a escutar a voz do que é verdadeiro.
Com meu forte abraço.
Há uma tensão oculta no próprio ato de escrever um ensaio: entre o desejo de revelar algo verdadeiro e o risco de se dissolver num confessionário. Zadie Smith defende, com elegância, a noção do ensaio impessoal — uma voz que pensa, mas não se impõe, que dialoga sem se apropriar — e é essa tensão que me interessa perscrutar.
Smith relata que, ainda jovem, descobriu uma espécie de “truque mental” para domar o pavor da página em branco: desenhar um retângulo e distribuir nele seis flechas, cada uma indicando um estágio da progressão argumental. Introdução, desenvolvimento, contraponto, síntese, aproximação da conclusão, e finalmente o encerramento. Esse esquema, tão simples quanto pragmático, funciona como um leme para a escrita — um contorno impessoal e discreto, ao qual nos agarramos quando a angústia nos assalta.
Não se trata, porém, de uma fórmula mágica (e Smith não a apresenta como tal). O retângulo é apenas uma estrutura provisória, que alivia o peso da responsabilidade criativa. Ele guarda espaço para o imprevisto: o instante em que o pensamento se curva sobre si mesmo, reveza posições, vacila. E é nesse intervalo que o ensaio de fato aparece — os “componentes invisíveis” da reflexão se tornam visíveis.
Dos seus relatos de carreira literária emerge também um paradoxo: Smith aprendeu a escrever de modo impessoal num ambiente que valoriza o enfoque, o “eu”. A universidade inglesa, como ela conta, ensinava o ensaísmo como um instrumento de desapego, ironia, controle — quase uma abstração retórica. Mas ela mesma, de dentro dessa tradição, viu-se empurrada ao ressarcimento do “eu”, aquele narrador caótico, íntimo e contraditório.
E aí reside o cerne da arte do impessoal: não suprimir o eu, mas deliberadamente distanciá-lo. Tornar-se “eu” de modo incerto. Em cada ensaio, aparece uma versão diferente do “eu” — não aquele que domina todas as certezas, mas aquele que hesita, recua, revisa. Smith reconhece que jamais é exatamente a mesma “eu” que digita aquele “eu”. A pessoa do ensaio é múltipla, dispersa, em mutação.
Esse “eu múltiplo” é, paradoxalmente, a base de um “nós” — a ideia de que o ensaio pode desenhar um espaço comum, sem exigir identidade total entre autor e leitor. A voz impessoal se propõe à solidariedade, não à fusão. Ao usar “nos”, “nós”, Smith busca um terreno mínimo compartilhado: dor, mortalidade, experiência humana. Não é supor uma equivalência absoluta, mas invocar limitações e contigências que todos conhecem em grau variável.
O ensaio impessoal, portanto, é uma ecologia frágil. Ele permite contiguidade: ideias que atravessam o presente e o passado. Permite distinção: o escritor não confunde suas dores com as dores alheias. Permite conflito: as ideias assumem disputas internas. E permite abertura: não encerra o leitor numa conclusão definitiva, mas deixa passagem para o questionamento próprio.
É irônico: num mundo saturado de vozes que clamam por autenticidade, o ensaio impessoal nos lembra que todo “eu” é um território disputado. A autenticidade absoluta é uma ilusão. O ensaio verdadeiro não diz “eu falo por mim”, mas “aqui, falo com vocês, mas não como vocês”. Não é um confessionário, mas um fórum de reflexão.
Se Zadie Smith oferece o retângulo com as flechas como instrumento de contenção, eu proponho vê-lo também como fronteira: onde o pensamento toca o limite de si mesmo. Onde o “eu” se retrai para permitir a reflexão. Onde a ideia se conserva impessoal para que não se perca em sentimentalismo. Aquele retângulo — e suas flechas — talvez seja uma câmara de contenção, um quarto limpo onde as obsessões pessoais aguardam serem filtradas.
No fim, quem leu ou quem ensaia sabe: o impessoal é um ato de risco. Porque implica abrir-se ao outro sem se anular. Porque exige que contenhamos o “eu” para deixá-lo emergir em formas que não lhe são imediatamente próprias. E porque sempre haverá uma réstia, uma contradição, um instante em que a voz quase falha — e é justamente nesse instante que o ensaio vivifica-se.
Não é o esquecimento que ameaça a vida humana, mas a memória. Costumamos tratá-la como uma dádiva, o fio invisível que une passado, presente e futuro. No entanto, talvez seja mais exato vê-la como uma prisão que carregamos dentro de nós. Não escolhemos recordar: somos recordados.
Imaginemos por um instante uma existência sem memória. Seria caótica, dizem. Mas a ordem que a memória nos oferece não é menos ilusória. O que lembramos não é um inventário fiel do que aconteceu, e sim um arranjo moldado pelo desejo, pela dor e pela imaginação. A cada recordação, reconstruímos o passado com os tijolos de hoje. A memória não preserva a realidade — ela a inventa.
É por isso que confiar nela como guia é tão perigoso. Povos, como indivíduos, vivem de lembranças que acreditam sagradas, mas que são apenas versões fabricadas de acontecimentos irrecuperáveis. Guerras foram travadas não tanto pelo que aconteceu, mas pelo que alguém disse que aconteceu — e que muitos quiseram lembrar.
A literatura nos mostra esse duplo caráter da memória. O memorialista se limita a recitar lembranças, como se repetir o passado fosse suficiente para justificá-lo. O romancista, pelo contrário, revela sua natureza mais profunda: não há memória sem ficção. Marcel Proust compreendeu isso melhor que ninguém. Ao tentar recuperar o tempo, descobriu que a recuperação era impossível. O passado, quando retorna, já está deformado.
Assim, não é a ausência de memória que nos empobrece, mas o seu excesso. Escritores que só reproduzem lembranças estreitas, leitores que só interpretam dentro de experiências limitadas, acabam sufocados pela própria continuidade que tanto valorizam. É preciso esquecer para que algo novo se forme.
André Gide tinha razão ao dizer que “o difícil é inventar, ali onde a memória nos prende”. A memória é a corrente que nos ancora ao já vivido. A imaginação é a única força capaz de soltar o barco.
O mito moderno nos ensina a venerar a lembrança como se ela fosse sinônimo de identidade. Mas talvez a sabedoria esteja em reconhecer que somos feitos também do esquecimento. Esquecer não é perder, mas libertar-se. Uma vida sem memória seria impossível; uma vida regida apenas por ela, insuportável.
No fim, talvez a maior ilusão seja acreditar que dominamos nossas lembranças. Elas é que nos dominam — e a liberdade, se existe, só pode nascer no espaço breve em que ousamos criar a partir do que não lembramos mais.
No centro de As Cidades Invisíveis está um gesto simples e definitivo: Kublai Khan interrompe o rito das descrições e pergunta por Veneza — a cidade natal de Marco Polo — e Polo responde que, em verdade, todas as cidades que descreveu são, de algum modo, Veneza. Esse encontro não está numa página solitária; trata-se de um dos interlúdios que pontuam o romance, aqueles curtos diálogos que abrem e fecham os núcleos do livro — o momento sobre Veneza aparece, como se costuma notar, justamente no ponto médio da obra. A estrutura do livro (interlúdios regulares que enquadram cinquenta e cinco cidades) reforça essa tese: Calvino faz do enquadramento a própria lição.
Há, nesse movimento, duas verdades que exigem ser examinadas em conjunto. A primeira é a da origem: todo ato de representação surge de um lugar particular, de um corpo, de um hábito. Quando Polo fala, ele não apenas relata terras estrangeiras; leva consigo a cartografia íntima de Veneza — sua nostalgia, seu modo de ver canais e pontes, seu ritmo de partida. Essa é a condição humilde e indesejada do escritor: nunca se fala sem ser ouvido como si mesmo. A universalidade que almejamos é sempre, no fundo, uma máscara da nossa cidade natal. Ler Calvino é aprender que o sujeito que narra é, ele próprio, uma metrópole.
A segunda verdade é a da perda: a linguagem não preserva; ela transforma. Dizer é, sempre, reduzir. A palavra “angústia” contém menos que a angústia; o mapa não é o território; o nome não é o corpo que nomeia. Quando convertimos experiência em enunciado, fazemos economia de detalhe, comprimimos as texturas e abrimos espaço para generalizações. A memória, fixada em tinta, marcha em direção à sua própria aniquilação — aqueles contornos vividos que insistimos em congelar perdem, na transmutação, a sua espessura originária. É por isso que Polo teme: falar de Veneza é arriscar-se a perdê-la.
Se juntarmos essas duas proposições chegamos a uma conclusão inquietante sobre política. Ideologias e utopias surgem exatamente desse duplo vício: nascem de um lugar particular (uma cidade, uma classe, uma ciência da História) e pretendem, por meio do enunciado sistemático, fixar para sempre as experiências humanas em categorias seguras. O liberalismo, o socialismo, as promessas tecnocráticas do progresso — todos partem de mapas que pretendem recobrir o território humano. Mas a palavra que pretende salvar faz o oposto: reduz, doma, sacraliza. A fé no design racional do mundo transforma a pluralidade de vidas em peça de museu. O que começou como esperança vira liturgia; o que prometia emancipação converte-se em coerção.
John Gray escreveu que a secularização muitas vezes produz novas religiões políticas; aqui a lição de Calvino faz esse diagnóstico pictórico: ao transformar Veneza em paradigma, esquecemo-la como experiência. A política que promete uma totalidade — um plano para o homem dos homens — transforma o político em sacerdote e os cidadãos em fiéis. A história do século XX deu provas às dúzias desse processo: os projetos que afirmavam devolver o mundo à razão tornaram-se aparelhos de coerção. Agramentos racionais que aspiravam a domar a contingência humana acabam por domesticar e por vezes exterminar a variedade que diziam proteger.
Então, que papel resta à literatura? Não a de bálsamo otimista, certamente — e nem a de um escapismo neutro. A literatura tem uma responsabilidade mais radical: não consagrar o futuro, mas mostrar com precisão as fissuras do presente. Não pregar dogmas; recusar a promessa de cura por sistemas. Enquanto a ideologia ergue altares ao porvir, a literatura, por sua natureza, é uma liturgia da perda. Ela enseja, com frieza e ternura, o reconhecimento de que o humano é sempre maior do que nossas teorias. Onde a filosofia deseja ordenar, a literatura descreve; onde a política promete cura total, a literatura nomeia feridas.
É preciso, portanto, uma política de humildade — não no sentido condescendente do “realismo” que só administra grandes narrativas, mas como uma prática que assume limitação: admitir que não há linguagem transparente capaz de fixar o humano sem violá-lo; admitir que a preservação é sempre parcial; admitir que governo e poesia são ofícios distintos e que o primeiro não pode usurpar a linguagem do segundo sem violência. A revolta política mais urgente hoje não é a de substituir um dogma por outro, mas a de desmontar a pretensão de totalidade. Isso não é resignação: é coragem política.
O final, então, precisa ser uma pequena catequese invertida. Recusar o futuro como altar. Desmontar as liturgias do progresso. Recuperar o hábito de descrever com honestidade. Defender a cidade de cada um — não como modelo impermeável, mas como vulnerabilidade que persiste. Se Calvino nos ensina que todas as cidades são Veneza, a lição política que devemos tirar é que toda política que se pretende única esvazia as cidades de sentido. A única salvação plausível é a prática modesta de escrever sobre o que se perdeu — não para restaurá-lo ingenuamente, mas para preservá-lo como advertência.
Terminemos com algo que soaria a epígrafe de um moralista: a história não está à espera de nossos mapas; a política não nos absolverá da finitude. Quem quer dominar o mundo pelo enunciado só constrói altares para os mortos. Aos vivos resta o gesto menor e mais perigoso: narrar, com toda a franqueza que cabe em uma sentença, as coisas que o poder tenta reduzir. Se há redenção, ela passa por aqui — não em promessas, mas na resistência quotidiana de quem recusa a liturgia e escreve as cidades como ruínas habitáveis.
Acreditamos que a linguagem é um instrumento a nosso dispor. Imaginamos que a palavra é um utensílio neutro, algo que pode ser usado para construir pontes ou muros, como se seu valor dependesse apenas de nossas intenções. Mas a língua não é dócil. Ela não é uma ferramenta que possuímos, mas uma força que nos molda. É ela quem define o que podemos pensar, o que podemos sentir, o que somos capazes de imaginar. Quando a língua se corrompe, não é apenas a comunicação que se perde: é a própria experiência humana que se estreita, até que nada reste além de slogans, ruídos e simulacros de pensamento.
A decadência da linguagem não é um acidente. Ela acompanha de perto o processo de decadência das sociedades. Civilizações raramente colapsam por catástrofes externas; elas apodrecem de dentro para fora, e o apodrecimento começa sempre pela palavra. Quando “liberdade” significa apenas o direito de consumir, quando “justiça” se confunde com cálculo eleitoral, quando “verdade” se dissolve em opinião, a língua já não descreve o mundo — apenas encobre a sua degradação.
O escritor, nesse cenário, não é herói, tampouco profeta. É apenas um guardião solitário de algo que os outros esqueceram. Seu trabalho é ingrato porque se mede em negativas: recusar o clichê, desconfiar do adjetivo fácil, desconstruir a frase que desliza sem atrito. Não se trata de inventar novas verdades, mas de impedir que as antigas sejam reduzidas a slogans. A vigilância da língua é, na prática, uma forma de resistência. E toda resistência verdadeira é invisível, porque se exerce contra a corrente onipresente da vulgaridade.
Vivemos num tempo em que a facilidade é um valor supremo. A linguagem se ajusta a esse imperativo. O discurso político prefere frases prontas a qualquer nuance; a publicidade transforma até as palavras mais densas em fetiches de consumo; as redes sociais reduzem a fala humana a fragmentos descartáveis. Nesse ambiente, a palavra não nomeia mais o real — apenas repete fórmulas que o tornam suportável. O resultado não é silêncio, mas um ruído incessante que torna impossível a escuta.
O perigo é que já não percebemos a perda. Quando a palavra se gasta, pensamos que se trata apenas de estilo. Mas a perda da precisão linguística é também a perda da capacidade de distinguir. E quando não distinguimos, quando já não sabemos separar emoção de histrionismo, ideia de slogan, verdade de propaganda, estamos mais vulneráveis do que imaginamos. A prisão não começa com muros, mas com a redução do vocabulário.
Orwell compreendeu isso: reduzir a língua é reduzir o pensamento. O que não pode ser dito não pode ser pensado. E o que não pode ser pensado não existe. O totalitarismo opera antes de tudo sobre a palavra. Mas não é apenas sob regimes declaradamente autoritários que isso ocorre. A tirania da comunicação fácil, a política transformada em espetáculo, o entretenimento convertido em critério de verdade — tudo isso também restringe o que podemos dizer e, portanto, o que podemos ser.
O escritor que vigia a língua não salva o mundo. Ele tampouco impede a ruína das civilizações. Mas sua recusa em aceitar o vocabulário gasto impede que a degradação seja total. Ele mantém aberta, ainda que para poucos, a possibilidade de uma experiência não corrompida. Em meio à vulgaridade, ele lembra que é possível falar com precisão, e, portanto, viver com autenticidade.
A vigilância da língua não é heroica. É artesanal, quase invisível. Ela acontece nas margens, nas frases reescritas, nos adjetivos podados, nas imagens recusadas. Mas é aí que se decide se a civilização se dissolve inteiramente no espetáculo ou se resta uma fenda de resistência. Quem cuida das palavras protege, sem saber, a própria condição humana.
Não se trata de esperança. Civilizações sempre ruem, línguas sempre se corrompem. O escritor não interrompe esse processo, apenas o atrasa. Mas nesse atraso está a única forma de dignidade que nos resta: não entregar de uma vez aquilo que somos à tirania do vazio.
O novo documentário de Petra Costa, Apocalipse nos trópicos, é menos um estudo do presente do Brasil do que um exercício de imaginação apocalíptica. O título não é apenas sugestão de metáfora, mas programa estético: a diretora olha para a política como quem olha para uma tragédia já anunciada, uma ruína a ser contemplada com fascínio e horror.
Costa retoma o fio narrativo deixado em Democracia em vertigem e o prolonga até os anos recentes: a ascensão de Bolsonaro, a pandemia, a soltura de Lula, a eleição de 2022, o golpe fracassado de 8 de janeiro. Mas o filme não é apenas uma sucessão de fatos; é uma composição operística, uma dramaturgia de contrastes. Favelas contra condomínios, corpos entubados contra falas cínicas, multidões fanáticas contra a frieza burocrática da limpeza que se segue à destruição. Tudo é montado como espetáculo, e é nesse ponto que o documentário alcança sua força e seu limite.
A diretora não esconde sua intenção de articular religião e política como partes de uma mesma engrenagem narrativa. O neopentecostalismo surge como chave de leitura, um mito coletivo que transforma o fim do mundo em promessa de redenção. A Bíblia, ou melhor, O Apocalipse, é convocada como matriz simbólica para ordenar a história política recente do país. Assim, os fiéis aparecem como massa, os pastores como demagogos e a estética do culto como estética do poder.
Mas a metáfora, tão sedutora, cobra seu preço. Ao escolher um personagem — Silas Malafaia — como metonímia do bolsonarismo evangélico, o filme cria uma figura de vilão que concentra em si uma força que, na realidade, é dispersa, contraditória e múltipla. Essa simplificação dá clareza à narrativa, mas reduz a complexidade do fenômeno. O apocalipse como chave explicativa funciona bem no cinema, mas empobrece a política.
Há, em Apocalipse nos trópicos, uma tensão entre análise e catarse. Quando mostra a destruição em Brasília ao som de ópera, o filme atinge o sublime: não estamos diante de reportagem, mas de uma encenação do colapso da democracia. O que resta, porém, é a sensação de que o espetáculo substitui a reflexão. A religião não é interrogada em sua vitalidade social, em sua capacidade de oferecer sentido e pertencimento; é vista apenas como máquina de manipulação. O progressismo, por sua vez, aparece como espectador impotente, jamais como agente de contradições que também pavimentaram a escalada autoritária.
Talvez Petra Costa tenha escolhido o caminho da parábola, não da análise. Sua obra não pretende compreender o Brasil em sua totalidade, mas inscrevê-lo numa narrativa de tragédia universal. Apocalipse nos trópicos é, assim, menos um retrato sociológico e mais um ritual de luto — um cinema que deseja, acima de tudo, produzir impacto e memória. Se lhe falta nuance, sobra-lhe intensidade.
No fim, o filme nos lembra que o apocalipse não é apenas um evento religioso ou político, mas uma forma de olhar. E o olhar de Costa, por mais parcial que seja, insiste em nos confrontar com o espetáculo da ruína.
A biblioteca, dizem, é a oficina do escritor. Não é mentira. Mas tampouco é toda a verdade. Como tantas outras oficinas humanas, ela serve tanto para fabricar quanto para disfarçar. Disciplinar o hábito de leitura pode ser comparado a afiar uma lâmina: cria-se uma ferramenta precisa, mas que não pode impedir o destino de sua ferrugem.
O escritor que se cerca de livros acredita estar formando um laboratório. A metáfora é sedutora, pois sugere progresso, descoberta, controle. No entanto, o que se produz nesse espaço raramente é conhecimento novo. Mais frequentemente, a biblioteca é o palco de repetições. As frases que hoje acendem uma epifania não passam de ecos de epifanias passadas. O escritor imagina que descobre um caminho inédito; na realidade, tropeça em rastros deixados por mortos.
É verdade que alguns livros se abrem como janelas inesperadas. Mas é igualmente verdadeiro que a maior parte repousa em silêncio, aguardando um chamado que talvez nunca venha. Chamamos isso de abundância, mas o nome correto poderia ser superstição. Guardamos livros não lidos como outros guardam relíquias ou amuletos: objetos carregados de um poder potencial que nunca se realiza.
Não há nada de errado nisso. A vida humana é tecida por gestos desse tipo. O problema começa quando se confunde essa superstição com disciplina moral. Flaubert, encerrado em seu gabinete, é evocado como modelo. Mas sua regularidade não prova a eficácia da leitura; apenas ilustra a obstinação de alguém que acreditava, contra todas as evidências, que a obra de arte poderia ser esculpida à maneira de uma estátua clássica, perfeita e imortal. O destino de Madame Bovary não foi a eternidade, mas a transformação em mercadoria cultural — um produto entre outros, vendido em edições escolares.
A disciplina, dizem, molda a voz própria. Talvez. Mas também molda a submissão. Ler todos os dias é uma forma de fidelidade, e toda fidelidade é uma espécie de servidão. O escritor que retorna às mesmas páginas com devoção não está apenas cultivando sua imaginação; está, sobretudo, reafirmando sua dependência de fantasmas.
O que se chama “biblioteca viva” não passa, afinal, de um cemitério animado pela ilusão de movimento. Cada livro é um túmulo; cada frase, um epitáfio. Quando lemos, conversamos com mortos. E ao escrever, não fazemos mais que acrescentar uma nova camada a esse cemitério sem fim.
Eis a ironia: é justamente nessa conversa com fantasmas que se funda a possibilidade de uma voz literária. Não porque o escritor seja livre, mas porque a liberdade é uma ficção sustentada por gerações de mortos. A biblioteca não liberta; enreda. Mas é nesse enredamento que surgem, de vez em quando, as frases que parecem nos pertencer.
Assim, o escritor continua. Não porque espere redenção, mas porque, ao folhear páginas já amareladas, encontra o inesperado: a centelha que o prende, por um instante, ao mistério insuportável da existência.
Cecília Olliveira abre seu livro com um aviso que deveria ecoar como um presságio: “este não é um livro só sobre bandidos”. A advertência é crucial, pois revela a falácia que molda a narrativa oficial sobre as milícias brasileiras. Ao invés de aberrações marginais, tratadas como desvios ocasionais, Olliveira mostra que as milícias são a expressão mais fiel do Estado contemporâneo no Brasil: um Estado que ensina, treina, remunera e, por fim, converte parte de seus agentes em mercadores de violência.
Não se trata, portanto, de um “poder paralelo”. O paralelo é ilusório. O que emerge em suas páginas é a constatação de que as milícias são o próprio Estado em sua versão mais desnuda — desprovida da retórica de legalidade, mas munida de todo o aparato institucional. O miliciano não é o inimigo do Estado; ele é seu filho legítimo.
A trajetória de Cabo Bené, fio condutor do livro, é paradigmática. Um homem que ingressa na Polícia Militar com o juramento de proteger e, gradualmente, atravessa a linha que o separa da criminalidade. Mas essa passagem não é um salto no vazio. É, antes, uma transição natural em um ambiente onde a lógica da guerra contra inimigos internos já dissolveu as fronteiras entre polícia e crime. A linha, como mostra Olliveira, é tênue a ponto de se tornar ficção.
O mérito do livro é não se deter na psicologia de indivíduos, mas mapear a estrutura que os produz. A cultura da militarização, longe de ser um resquício da ditadura, tornou-se princípio organizador da vida política brasileira. A crença de que a violência pode ser purificadora — de que eliminar o inimigo é condição para a ordem — foi adotada por governos de diferentes matizes ideológicos. É nesse terreno fértil que as milícias prosperaram, apresentadas inicialmente como guardiãs da comunidade, até se revelarem como empresas de proteção e de morte.
O que impressiona, e ao mesmo tempo aterroriza, é a adaptabilidade dessas organizações. Da extorsão de comerciantes à gestão de serviços urbanos como água, transporte ou telecomunicações, as milícias colonizaram as esferas da vida cotidiana. Sua força não reside apenas nas armas, mas na capacidade de transitar entre legalidade e ilegalidade, mercado formal e subterrâneo. A milícia não é a negação da modernidade, mas sua versão mais crua: um híbrido de empresa e exército, moldado para extrair lucro da vulnerabilidade social.
O alerta de Olliveira é contundente: insistir na lógica de guerra como solução para o problema é equivalente a “apagar fogo com gasolina”. Cada operação militarizada, cada incursão violenta em territórios populares, reorganiza o tabuleiro, mas mantém intactas as estruturas que alimentam a proliferação miliciana. Não há guerra contra as milícias porque a guerra é a linguagem que as faz nascer e se fortalecer.
Esse diagnóstico ecoa além do Brasil. A fragilidade dos Estados modernos não se expressa apenas na incapacidade de conter o crime, mas no modo como se confunde com ele. A esperança liberal de que instituições sólidas garantiriam a separação entre ordem e desordem revela-se, mais uma vez, ingênua. Como tantas vezes na história, o poder legal e o ilegal não se opõem: eles se complementam.
O livro de Cecília Olliveira, portanto, não é apenas uma investigação jornalística sobre a ascensão de um ex-policial convertido em chefe miliciano. É um retrato de um país onde a segurança se transformou em mercadoria, onde o Estado e o crime se entrelaçam em um pacto tácito, e onde a violência deixou de ser exceção para se tornar regra. A pergunta que atravessa suas páginas — “por que isso deveria importar para você?” — só admite uma resposta. Importa porque, em uma sociedade que vive sob a sombra das milícias, nenhum espaço permanece imune. O que se passa nas vielas da Baixada Fluminense é apenas o prenúncio do destino reservado a todos os que acreditam viver fora de seu alcance.
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